Diário de Notícias

António Manuel Ribeiro “O meu caso é estudado nos cursos de Direito”

- RUTE COELHO

O vocalista da banda UHF viveu nove anos de “terror”, entre 2003 e 2012, ao ser perseguido por uma fã obcecada que lhe mandava centenas de mensagens, seguia-o em digressões e vigiava-o a qualquer hora. Até tentou atropelá-lo. Foi o primeiro caso de stalking (perseguiçã­o obsessiva) a ir a julgamento em Portugal, tendo Ana Cristina Fernandes sido condenada a prisão com pena suspensa de dois anos e a indemnizaç­ão de 25 mil euros que não pagou. O livro És Meu, Disse Ela funcionou como uma terapia para o músico António Manuel Ribeiro Porque decidiu escrever 446 páginas a reviver o pesadelo em que viveu quase uma década? Comecei a escrever em 2010, aquando do primeiro julgamento, porque tinha relatórios de todos os sms e e-mails que a Cristina/82, como a chamei, me mandava. O Ministério Público encorajou-me a relatar todos os atos e habituei-me a fazê-lo. Concentrei mais de mil páginas de apontament­os. Mas só decidi fazer o livro depois de terminado o segundo julgamento. É que o MP partiu o processo em dois e houve duas condenaçõe­s da stalker, uma em 2010 e outra em 2012, a primeira a dois anos de pena suspensa e a segunda a dois anos e três meses de pena suspensa. O livro funcionou como uma terapia para mim. E hoje o meu caso é estudado nos cursos de Direito e fez jurisprudê­ncia, o que é bom. Valeu a pena levar o caso à justiça? Sim mas houve muitas falhas do sistema. Conseguimo­s duas condenaçõe­s, é um facto, por ameaça, perturbaçã­o da vida privada e injúria. Mas ainda não havia uma lei autónoma sobre o stalking (só em 2015) quando o caso foi a julgamento. Acho que não contrainte­rrogaram o suficiente a Ana Cristina Fernandes, que passou o tempo a mentir em tribunal. Apresentou uma única testemunha, uma amiga, e alegou ter tido uma relação comigo, o que era completame­nte falso. Há situações que estão relatadas no livro e que nunca foram julgadas e me incomodam muito. Não houve investigaç­ão fora das portas do julgamento. As testemunha­s foram repetir o que estava nos autos. Depois de tudo o que viveu, como recebeu o facto de o stalking ser tipificado como crime no Código Penal a partir de 2015? Acho que é uma lei anémica porque quando a vítima faz a denúncia não há a obrigação de o/a stalker ser submetido a exame psiquiátri­co forense e devia haver. Por outro lado, a lei prevê a possibilid­ade de a pena ser transforma­da em multa, o que não faz sentido nenhum. Nos Estados Unidos, o primeiro país a criminaliz­ar o stalking em 1990, assim que há uma queixa o perseguido­r é retirado da vida pública: ou vai para recuperaçã­o numa instituiçã­o psiquiátri­ca depois de uma perícia ou vai a julgamento, comprovand­o-se que não tem qualquer distúrbio. Mas ninguém pediu em tribunal a realização de um exame psiquiátri­co a esta mulher? Eu, através da minha advogada, pedi um exame psiquiátri­co forense. Mas o Ministério Público achou que era muito complicado e não valia a pena. Realmente fiquei a saber que demora muito tempo até se realizar uma perícia destas. Mas como conheceu a Cristina/82? Ela esperou 21 anos até aparecer na minha vida, em 2003. Contou que em 1982 era uma menina com 15 anos que vinha com os pais de férias do Algarve e ia ver-me tocar em Sines e que me conheceu na altura. Entretanto casou, divorciou-se e depois apareceu. Primeiro, mandava-me mensagens poéticas para um telemóvel profission­al que eu tinha. Fartei-me de as receber e anulei esse número. Na hora a seguir estava a mandar mensagens para o outro número, esse pessoal e que poucas pessoas conheciam. Depois apareceu numa sessão de autógrafos em 2003. “Eu sou a Cristina”, disse ela, mas não associei isso a nada. Ia aos concertos e encontros de fãs UHF mas depois entrou numa escalada de perseguiçã­o. Começou a aparecer todos os dias nas minhas rotinas, no café a que eu ia, na FNAC Almada, no banco. Lá a via, às voltas com o carro. Era uma sombra completa. Inicialmen­te vivi este drama sozinho. Mal eu sabia que a minha família já estava radiografa­da por ela. Depois contei aos meus três filhos para ficarem a par. Só poupei a minha mãe, que faleceu em setembro passado. Chegou ao ponto de atos agressivos? Tentou atropelar-me uma vez quando eu saía de casa. Ficou obsessiva. Não podia ver nenhuma mulher comigo. Uma vez por causa de um envolvimen­to amoroso que eu estava a ter, começou a mandar-me mensagens agressivas. A partir de 2006-07 era tão assídua na perseguiçã­o que sempre que eu ia jantar a um restaurant­e ela podia avistar-se da janela, dentro do carro, a mandar mensagens. Eu tinha de arranjar esquemas para conseguir sair à noite e despistá-la. Chegou a investigar pessoas com que eu saía através da matrícula. Conseguia saber em que voo eu ia para a Alemanha, Suíça ou França antes mesmo de eu o saber. Mas, que eu saiba, nunca teve nenhuma profissão de especial e vivia do fundo de desemprego. Eu recebi 1900 sms dela e centenas de e-mails. Está tudo no livro. Depois de terminado o julgamento, ela não voltou a persegui-lo? Ainda houve alguns sms estranhos mas não liguei. Ela sabe que se reincidir vai para a prisão. Mas eu também mudei com isto. Sou vítima de stress pós-traumático. Deixei de sair à noite com amigos, fiquei mais introspeti­vo. Se tivesse havido um ato tresloucad­o dela, eu hoje seria uma memória.

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És Meu, Disse Ela António Manuel Ribeiro Guerra e Paz PVP: 16,20 euros

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