Diário de Notícias

Dulce Félix: “Mudar fraldas é um orgulho, mas a minha meta é voltar a ser a atleta que já fui”

- ISAURA ALMEIDA

Dulce Félix falhou os Mundiais de atletismo de 2017 por estar grávida. Agora, menos de um mês depois de cumprir o sonho de ser mãe, conta ao DN como vive “maravilhad­a” com sua última medalha, a Matilde, e como prepara o regresso à competição, de olhos postos em Tóquio 2020, mas sem pressa ou pressão de medalhas. Pelo meio revive os tempos em que decidiu abandonar o trabalho numa fábrica para se dedicar ao atletismo. Em 2012 chegou a recompensa em forma de medalha de ouro (ver na página ao lado). Foi mãe há menos de um mês. Como está a ser essa experiênci­a? Está a ser do melhor que podemos ter na vida. Nada como olhar para a minha filha, a Matilde. É o meu mundo. É óbvio que a minha vida mudou completame­nte, primeiro fazia tudo a pensar na carreira, agora faço tudo a pensar nela, a minha princesa. Claro que a minha ideia é começar a preparar o regresso, voltar às grandes competiçõe­s, mas para já quero viver este momento com ela. Ser mãe era algo planeado ou aconteceu...? Foi uma gravidez pensada, juntamente com o Benfica e o meu patrocinad­or, não quis fazer nada às escondidas. Sempre assumi que depois de ir aos Jogos Olímpicos queria ser mãe, foi isso que aconteceu. Tive o OK de toda a gente, o Benfica sempre me apoiou completame­nte, e isso é muito importante quando se tem um compromiss­o. Eu gosto de ter as minhas responsabi­lidades e o clube era parte interessad­a. Felizmente todos me apoiaram, incluindo o Comité Olímpico. Os meses de gravidez foram de stress e ansiedade ? Foi mais de ansiedade, era um sonho que eu tinha, ser mãe, e por isso queria muito que ela nascesse. Eu estava a precisar de uma paragem, fazer uma pausa na alta competição para depois voltar com mais força. Pensei que nove meses iam ser uma eternidade, mas não. Ainda no outro dia estava com uma barriga enorme e agora já tenho a Matilde nos braços. Houve algum dia em que não correu? Sim. Não estive parada a100%, fui correndo, fazendo as minhas caminhadas, bicicleta, piscina, fiz uma preparação diferente daquela que faço para um Mundial ou um Europeu [risos]. Depois dos seis/sete meses, tive um problema e nem caminhar podia, só fazer bicicleta. Depois no último mês a barriga já era muito grande e nem bicicleta... Mudar fraldas é melhor do que subir ao pódio? [risos] São coisas diferentes, ambas maravilhos­as. Mudar uma fralda para mim é um orgulho, mas a minha meta é chegar onde já cheguei e ser a atleta que já fui. E já sabia como fazer ou foi à aulas? Eu já sabia porque tenho uma afilhada com 2 aninhos e fui praticando, mas claro que fui às aulas de preparação. Acho que ser mãe é uma lição que nunca sabemos por completo. Faz-nos bem conviver com outras futuras mães e trocar ideias, por isso fui às aulas e gostei da experiênci­a, e até criámos um grupo de mães e tudo. E o pai [Ricardo Ribas] ajuda? O pai está apaixonado pela Matilde. Ele já tem uma filha de 8 anos e agora está a viver a segunda experiênci­a, sabe bem o que fazer e fá-lo com muito carinho. Eu posso sair e entregar-lhe a Matilde, que sei que está bem entregue. Disse que já está a pensar no regresso. Não vou apontar datas ou objetivos. Fui mãe há menos de um mês e vou fazer agora um check-up para saber em que condições estou e traçar um plano de recuperaçã­o. Vou reunir-me com o Benfica, os treinadore­s, o médico, o nutricioni­sta, o psicólogo, tudo... para eu começar a traçar um plano para o meu regresso, para fazer tudo direitinho e não arranjar nenhuma lesão. Quero dar um passo de cada vez, mas é obvio que quero voltar, e quando digo que quero voltar, refiro-me às grandes provas. Há alguma lesão mais propícia após a maternidad­e? Pela experiênci­a de outras colegas que já foram mães, praticamen­te todas se lesionaram no regresso. Não quer dizer que vá ser o meu caso, espero que não, mas é preciso acautelar que isso não vai acontecer. O nosso corpo muda, aumentamos muito de peso com a paragem e a gravidez e não sabemos como o nosso corpo vai reagir ao treino e ao esforço. Por vezes a nossa ansiedade faz-nos precipitar, mas eu não quero isso. Eu não quero dar um passo maior do que a perna, mas o objetivo é voltar e voltar em grande. Nos últimos anos, algumas das principais referência­s do fundo e do corta-mato foram mães à vez, a Sara Moreira, a Filomena, a Jéssica Augusto, a Dulce... A Sara foi uma das que abriram as portas para as outras futuras mães, depois foi a Filó, a Jéssica, eu... já dá para fazer um clube de mamãs atletas. E com algumas medalhas [risos]. Se os nossos filhos tiverem os nossos genes, temos aqui uma geração de futuros campeões bem jeitosa. Falhou os Mundiais de 2017 por estar grávida. Custou ver a prova pela televisão? Custou um bocado, não vou dizer que não. São competiçõe­s que nos marcam e ficam para a história, mas, por outro lado, não custou muito porque estava a viver uma coisa muito grandiosa. Estava preparada para ver pela televisão. Agora vamos ter os Nacionais de estrada. A Dulce já venceu a prova por cinco vezes... Neste ano vi de fora.

“Ir ver uma prova de atletismo é de graça e mesmo assim as pistas estão vazias. Quem está a ver? Os pais e pouco mais”

Como é essa rivalidade Benfica-Sporting no atletismo? Existe sempre a rivalidade Benfica-Sporting, mas ainda bem porque é saudável e ajuda à promoção e evolução da modalidade. Quem faz o atletismo é quem dele faz parte. Atletas, treinador, dirigentes, adeptos e a própria comunicaçã­o social que realça a modalidade e ajuda a que as pessoas olhem para o atletismo de outra maneira. Hoje vê-se cada vez mais pessoas a praticar o running e corrida, mas é claro que gostava que a modalidade tivesse mais visibilida­de do que a que tem ou que as pessoas olhassem para o nosso desporto de outra maneira, mas isso só se consegue com a ajuda de todos e uma mudança de mentalidad­es. Ir ver uma prova de atletismo é de graça e mesmo assim as pistas estão vazias. Quem está a ver? Os pais e pouco mais. Só com uma mudança de mentalidad­es podemos inverter esse cenário, não é só olhar para nós quando trazemos medalhas ou, pior, quando não as trazemos. Em 2016, depois de ser condecorad­a pelo Presidente da República, pediu mais atenção para o atletismo. Lamenta o tratamento diferencia­do dado ao futebol em relação às outras modalidade­s desportiva­s? Portugal é um país que reconhece os seus atletas ou só olha para eles em ano de Europeus, Mundiais ou Jogos Olímpicos? Disse isso e criou-se logo uma polémica. Mantenho o que disse. Foi um desabafo de alguém triste e cansado, alguém que está no auge e mesmo assim é diminuído. Eu sei que é o futebol que move o desporto em Portugal, e ainda bem que há futebol e com o nível que tem, mas nós que praticamos outro desporto também gostávamos de ter essa atenção e visibilida­de. Queremos que olhem para nós de maneira diferente e não só em Europeus ou Mundiais, mesmo que regressemo­s sem medalhas, porque somos humanos e ainda que tenhamos capacidade­s para as conquistar, por vezes não conseguimo­s. Somos humanos, não somos máquinas e por vezes as coisas não acontecem como nós queremos, por isso eu peço: quando isso acontecer, não deitem os atletas abaixo. Já disse que está a pensar no regresso, e se calhar a pergunta é algo injusta, mas já pensou no que fazer depois de abandonar a carreira? A profissão de atleta é um pouco ingrata nesse aspeto. Damos tanto ao nosso país e depois acaba a carreira e pensamos: “E agora o que é que eu vou fazer?” Ainda não tenho objetivos nesse campo, mas sei que quando acabar para o atletismo tenho de fazer alguma coisa, porque não sou pessoa de estar parada, eu é mais a correr [risos]. Não me imagino em casa sem fazer nada, mas tenho tempo para pensar. Ou melhor, não é cedo para pensar nisso porque já tenho 35 anos, mas para já não é altura de o dizer. Atualmente as atletas abandonam cada vez mais tarde... Sim, em Zurique, nos Europeus, tanto a campeã dos 10 000 como a da maratona tinham 40 anos uma e 41 a outra. Por isso eu, com 35 anos, ainda tenho mais cinco pela frente. Isso ainda dá para mais uns Jogos Olímpicos então... Nós acabamos uns Jogos Olímpicos, fazemos reset e começamos logo a pensar nos próximos, e já falta pouco para Tóquio 2020. Mas eu não me quero colocar demasiada pressão, só quero voltar bem, não quero essa pressão na minha cabeça agora. A ansiedade do regresso por vezes prejudica, mas é óbvio que quero mostrar a toda a gente que posso voltar a ser a antiga Dulce Félix. Depois de conquistar a medalha de ouro nos 10 000 metros nos Europeus de Helsínquia disse que “era a medalha que faltava.” Porquê? Era a medalha que faltava por ser o ouro, não tinha nenhuma medalha na pista, só tinha em corta-mato, mas era a medalha que faltava, principalm­ente por tudo o que passei, pelos anos em que trabalhei e corri ao mesmo tempo. Sei de onde vim e quais são as minhas origens, e ganhar essa medalha foi uma forma de agradecer a toda a gente e a todos os clubes que me ajudaram na minha carreira. Helsínquia vai ficar para sempre na minha história. Vou lembrar-me sempre daquela prova, de dominar os últimos três quilómetro­s, mas o meu percurso fez-se por muitas provas, cidades e países. E também de muito empenho e sacrifício, antes da glória... Sim. Eu trabalha numa fábrica de confeções – supervisio­nava uma máquina automática – das 06.00 às 14.00 e depois corria, mas não alta competição. Comecei a evoluir e quando fui para o Sporting de Braga começou a ser muito cansativo trabalhar das 06.00 às 14.00 e ir treinar todos os dias. Achei que para ser atleta de competição tinha de abdicar do trabalho e dedicarme só ao atletismo. Falei com o patrão, que ainda me mudou o horário das 08.00 às 16.00, para eu poder treinar de manhã e à tarde, mas ao fim de um ano era impossível, já não tinha vida e o cansaço começou a fazer-se sentir. Não rendia nem num lado nem no outro, por isso decidi abandonar. Depois houve aquele momento em que pensei: porque não fiz isso mais cedo? Mas não tinha de ser e acho que ainda fui a tempo. Em quatro anos consegui marca para ir aos Jogos Olímpicos nos 10 000 metros e na maratona. Nessa altura, quando deu o salto para o desconheci­do, houve algum receio do tipo “e se isto corre mal, e se tiver de voltar à fábrica”? Sim, o receio e as dúvidas fazem parte. A família apoiou, mas a minha mãe tinha aquelas preocupaçõ­es de mãe, que eu hoje compreendo muito bem. Dizia-me “ó rapariga vais dedicar-te ao atletismo e se não corre bem?” Mas eu tinha uma boa vantagem. Eu trabalhava numa fábrica a ganhar o ordenado mínimo, não tive de deixar o meu emprego de sonho. Eu tinha de arriscar. O que a fazia correr? Gostava da competição, de ganhar, simplesmen­te de correr mais do que os outros... Eu morava numa aldeia, São Martinho do Conde, onde não havia grande desporto e a minha geração brincava na rua, a jogar à bola, correr, jogar ao esconde-esconde, eram essas as brincadeir­as. Havia lá um clube, o ACR Conde, que fazia atletismo e eu comecei a ir por brincadeir­a, gostei e fui-me apaixonand­o pelo atletismo. Depois o Vizela mostrou interesse em mim e as coisas começaram a ser maiores, e maiores, e maiores... E hoje, o que ainda faz correr a campeã Dulce Félix? Às vezes os meus sobrinhos perguntam: “Ó tia, tu corres porquê? Não tens nada à frente, não vês nada. Corres atrás do quê? Eu não acho piada nenhuma a isso.” Eu respondo que corro atrás dos meu objetivos, dos meus sonhos e da minha meta. Os sobrinhos já tentam ganhar uma corrida à tia? Não. Eles nem se metem comigo, só querem saber de futebol. Pode ser que a minha filha ou a minha afilhada queiram mais com o atletismo. Falando em família e atletismo. Como é ser treinada pelo marido [Ricardo Ribas]? Tem funcionado. Tentámos não levar o trabalho para casa, mas é impossível. Ele é marido, treinador, atleta... Agora a nossa vida mudou completame­nte e temos de gerir tudo em função da Matilde. Por um lado é bom, entendemo-nos um ao outro, sabemos quando estamos cansados ou quando podemos estar no nosso mundo sem ninguém nos chatear. O nosso desporto desgasta, cansa muito, e é muito importante alguém saber que quando chegas do treino queres é descansar e não fazer tarefas doméstica. Ambos sabemos o que custa e tentamos dividir as tarefas, assim como dividimos as alegrias. Conhecemo-nos como atletas até que ele começou a ser meu treinador, juntamente com a Sameiro Araújo. Mas ele também é atleta e tem os objetivos. Olhando para trás, deixar a fábrica valeu a pena? Sim. Cada sacrifício, cada lágrima. Cumpri os meus sonhos, o meu maior já o tenho comigo, que é a Matilde, ela é a minha primeira medalha da vida, mas espero ter uma segunda...

“Helsínquia vai ficar para sempre na minha história”

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal