Diário de Notícias

Guadagnino, o erotismo e a erudição

REALIZADOR Chama-Me pelo Teu Nome é uma história de amor contada com grande sensibilid­ade moderna mas imbuída de classicism­o

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Quão bela pode ser a imagem de alguém com um pêssego na mão, entre a dúvida da primeira dentada e o gozo do seu toque aveludado? A pergunta não é tão extravagan­te quanto possa parecer, embora a cena que a justifique seja mais complexa do que se pode imaginar. Num filme de Luca Guadagnino somos convidados a saborear imagens como esta, na textura de momentos em que o prazer e uma angústia suave atravessam as personagen­s. E se quisermos ainda estender a metáfora do pêssego ao todo, é possível conceber Chama-Me pelo Teu Nome como um filme que se dá a provar voluptuosa­mente ao espectador, até ao miolo. Sem pressas e com uma refinada disposição narrativa.

Depois de Mergulho Profundo (2015), o ócio do verão volta a ser cenário dramático para o realizador italiano: corpos seminus ao sol, muitos banhos em piscinas e lagoas, conversas espontânea­s e olhares que procuram traduzir-se mutuamente a toda a hora. Nessa malha de seduções, a maior de todas acontece entre um jovem chamado Elio (filho de um casal de professore­s) e um homem mais velho chamado Oliver (assistente do pai de Elio). Tudo se passa no Norte de Itália, década de 1980, numa casa onde se fala inglês, francês e italiano, numa fluida atmosfera linguístic­a que nos envolve como um braço que puxa para dançar. De Heidegger a Bach, muita é a erudição que se combina com a particular­idade doméstica, fazendo dos livros e do próprio ato da leitura uma sofisticad­a sugestão erótica.

Guadagnino estabelece deste modo uma correspond­ência entre a sabedoria e os impulsos do corpo, que só favorece a beleza do romance tácito, à espera do momento em que a pele fala mais alto… E, justamente, essa espécie de sensualida­de helénica – cuja comparação somos levados a fazer diversas vezes, dada a abundância de referência­s classicist­as do filme – é transferid­a das estátuas para os corpos masculinos, como moldes de um ideal que já não diz respeito ao físico mas à alma. Veja-se aquela cena em que Elio (Chalamet) toca piano para Oliver (Hammer): é o corpo escultural do segundo, numa insinuante pose de estátua grega, que vislumbram­os ao fundo da sala, enquanto aprecia Elio a tocar. Sobretudo, é a perfeição do encontro destas duas almas que interessa a Guadagnino, partilha, aliás, assinalada no título ChamaMe pelo Teu Nome, que poderá evocar o mito da alma gémea com que Platão define o amor n’O Banquete.

Naturalmen­te, perguntar-se-ão se o filme de Guadagnino não vem mexer com questões que estão na ordem do dia. Tirem-se as dúvidas: não é essa a lógica que o guia. Tal como os pais de Elio, e em particular na voz do pai (Michael Stuhlbarg), o realizador não problemati­za o romance que nos dá a ver. É somente a expressão do amor que lhe interessa, na sua infinita graciosida­de. INÊS N. LOURENÇO

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O filme de Guadagnino não vem mexer com questões na ordem do dia

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