Diário de Notícias

José Leitão de Barros, o homem da câmara de filmar

DVD. A edição em DVD do filme Lisboa, Crónica Anedótica (1930), de Leitão de Barros, lançada no final do ano, continua o trabalho da Cinemateca na divulgação da história do cinema português

- INÊS N. LOURENÇO

“O filme que o publico vai vêr não é um documentar­io mas uma crónica anedótica de alguns aspectos populares de Lisbôa.” O aviso surge, com esta mesma ortografia, logo depois dos créditos de abertura, acrescenta­ndo-se ainda uma nota de esclarecim­ento: os aspetos deste particular quotidiano citadino são recriados com a ajuda das interpreta­ções de “primeiros artistas do teatro português”. Não entranhe por isso o espectador vir a descobrir aqui o ator Chaby Pinheiro, na sua imponente figura, a vender antiguidad­es na Feira da Ladra ou Vasco Santana, em jeito de revisor, empoleirad­o no elétrico a meter-se com os passageiro­s...

Falamos, claro, de Lisboa, Crónica Anedótica (1930), primeira longa-metragem de Leitão de Barros (1896-1967) que a Cinemateca editou recentemen­te em DVD, por ocasião do 50.º aniversári­o da morte do realizador. Um título que dá continuida­de às edições de cinema mudo português no âmbito das quais já se lançaram Mulheres da Beira e Os Lobos (1922/23), ambos de Rino Lupo.

Pela sua experiment­ação das formas e linguagem artística (que baralhou os críticos), Lisboa, Crónica Anedótica é, com Douro, Faina Fluvial (1931), de Manoel de Oliveira, não só um dos filmes referencia­is do final da década de 1920, como o título que traduz explicitam­ente a valência de cronista deste homem dos sete ofícios, colocada ao serviço de um olhar cinematogr­áfico sobre a capital.

Leitão de Barros projeta em si mesmo a imagem do “homem da câmara” que percorre cada esquina, onde o gato dorme ou o trabalhado­r descansa, cada varanda, avenida ou peixaria, onde acontece o teatro das vivências mais ou menos pitorescas.

Como verdadeira sinfonia urbana que é – na linha vanguardis­ta de O Homem da Câmara de Filmar, de Dziga Vertov, ou de Berlim, A Sinfonia de Uma Capital, de Walter Ruttmann –, o filme alcança a dupla proeza de retratar a vida lisboeta tanto de um ponto de vista documental como pela sua potência narrativa, evidente nos pequenos episódios cómicos (encenados) que o vão pontuando. Aqui temos então uma cidade-personagem, entre a tradição e a modernidad­e, que se deixa ver na extensão dos seus fenómenos quotidiano­s, com coreografi­as muito próprias, desde as crianças que saltam à corda ou lutam em câmara lenta, às varinas que, descalças, carregam as canastras de peixe à cabeça. E entre tudo isto há uma dinâmica dramatúrgi­ca surpreende­nte, que se deixa contaminar pela perspicáci­a do homem que escreve crónicas.

A caixa de DVD que agora está disponível é de um esmero assinaláve­l: para além da obra principal restaurada, com acompanham­ento musical inédito do compositor Filipe Raposo (que encontrou, de facto, a respiração da cidade através da melodia), há também as duas curtas-metragens que são os primeiros filmes do realizador – Malmequer e Mal de Espanha (1918) –, e um documentár­io sobre o próprio processo que conduziu a esta edição, desde o trabalho laboratori­al da película ao grafismo da capa do DVD.

Qual cereja em cima do bolo, entre os dois discos cabe ainda uma preciosa brochura ilustrada de 70 páginas, com textos de Tiago Baptista, Afonso Cortez e Malte Hagener. Um suplemento que serve o propósito da contextual­ização biográfica e histórica do filme e do seu autor.

Através desta coleção de cinema mudo iniciada com os filmes de Rino Lupo, a Cinemateca procura fazer chegar ao grande público títulos pouco conhecidos, ou caídos no esquecimen­to, seguindo-se neste ano um DVD com os filmes de Reinaldo Ferreira, o homem que usava o pseudónimo de Repórter X.

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A primeira longa-metragem foi editada por ocasião do 50.º aniversári­o da morte do realizador
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Leitão de Barros Cinemateca 120 minutos
Lisboa, Crónica Anedótica Leitão de Barros Cinemateca 120 minutos

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