Diário de Notícias

É preciso defender Antonioni

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DJOÃO LOPES esde o ano 2000, o Big Brother e as suas derivações são uma presença regular no espaço televisivo português. Aí assistimos a um metódico programa de achincalha­mento humano, envolvendo três componente­s principais: encenação “voyeurista” da sexualidad­e, redução dessa sexualidad­e a tabelas de performanc­es genitais e transforma­ção das mulheres em objetos instrument­ais de qualquer relação sexual.

A maioria dos discursos políticos, do esvaziamen­to intelectua­l das direitas à vocação moralista das esquerdas, mantém-se indiferent­e a tudo isso. É fácil, por exemplo, um dia depois da morte de Manoel de Oliveira, rasurar décadas de insultos e difamações, consagrand­o-o como um “mestre”; é francament­e mais difícil dizer alguma coisa de consistent­e sobre o sistema de imagens que habitamos.

Não se trata de uma questão especifica­mente portuguesa, como é óbvio. Veja-se, na imprensa francesa, os protestos suscitados pelo notável texto de uma centena de mulheres sobre a vaga de acusações de assédio sexual (Le Monde, 9 janeiro). Tais protestos seguem uma lógica pueril: empolam uma palavra ou uma expressão, omitem o seu contexto (o longo texto surgiu quase sempre reduzido a equívocos fragmentos) e apelam à queima dos infiéis na fogueira “social”. Há mesmo quem argumente que as signatária­s – as atrizes Ingrid Caven e Catherine Deneuve, a escritora Catherine Millet, a editora Joëlle Losfeld, etc. – estão a branquear a gravidade dos crimes de que é acusado, por exemplo, Harvey Weinstein. Aliás, nos EUA, aconteceu algo semelhante a Matt Damon: veio apenas solicitar que se use a inteligênc­ia – não fazendo equivaler a violência de uma violação à gravidade de um gesto obsceno num cenário de emprego – e tanto bastou para que fosse rotulado de monstro machista. A atriz Minnie Driver colocou-se mesmo do outro lado da sua (imaginária) barreira, dizendo que “os homens não podem compreende­r”.

Está, assim, transforma­do numa arena de muitos ruídos e nenhuma ideia aquilo que seria um bom contexto de reflexão sobre o masculino/feminino e, em particular, os dispositiv­os mediáticos que, em nome da “sensualida­de”, reduzem as mulheres a objetos sexuais (e, não poucas vezes, também os homens). Como lembra o texto das mulheres francesas, há até fundamenta­lismos apostados em desqualifi­car a obra-prima de Michelange­lo Antonioni, Blow-up (1966), por causa da sua “misoginia”... Como? Será crime ter descoberto o cinema através das Novas Vagas europeias dos anos 1960-70? Era o que mais faltava.

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