A verdade é esta: o assédio existe. É perpetrado mais regularmente por homens. Tange quase sempre a imparidade – com que às vezes se intercepta –, mas é um organismo independente dela
toda a gente, em qualquer momento, tem alguma espécie de poder e pode assediar.
Mas não foi agora, nem sequer com a primeira vez que se falou da lei do piropo, que eu me envergonhei de como andei de volta daquelas duas raparigas. E também não é por as saber hoje casadas, (aparentemente) felizes e (tanto quanto sei) realizadas profissionalmente, talvez até – aqui já é a minha esperança a falar – sem memória desse tempo em que as assediei, que deixo de me lembrar da minha lição.
Portanto, leio este manifesto das intelectuais francesas e não lhe encontro mais méritos do que na cavalgada justiceira de tantas e tantos que, do outro lado do espectro, identificam assédio no que não chega sequer a ser sedução – apenas pela necessidade de se indignarem, pela urgência de reclamarem uma causa maior, pelo desejo de se sentirem investidos de algum tipo de superioridade moral.
A verdade é esta: o assédio existe. É perpetrado mais regularmente por homens. Tange quase sempre a imparidade – com que às vezes se intercepta –, mas é um organismo independente dela. E, além de exigir enquadramento legal, com fiscalização a contento, exige educação.
A começar na primeira infância. A começar pelo trabalho das mães, tantas vezes as primeiras fomentadoras do machismo – que é outro organismo ainda, mas que se intercepta quase sempre com a imparidade e muitas vezes com o assédio – dos seus rebentos varões.
Percebo o que pretenderam as intelectuais francesas: há uma tradição a defender. Uma cultura. Com o puritanismo sentado no trono de Deus, cuja morte realmente ainda estamos longe de sublimar, proteger o que resta de humano nesta sociedade pede, às vezes, um certo radicalismo. Não é surpreendente se for a França a liderar essa batalha, pois já liderou outras.
Para mais, está em causa (também) um negócio. Lembram-se daquela anedota em que dois franceses conversam sobre sexo? Diz um: “O sexo é uma coisa um bocado suja, não é?” E diz o outro: “Se for bem feito.” Anedotas como esta estão um pouco por toda a cultura popular, do cinema à literatura, da televisão à música e à própria moda: francês é pouco asseado, muito romântico, encantadoramente bruto.
Mas, de facto, não é disso que se trata. Trata-se de abuso. Trata-se de poder, como ninguém se cansa de dizer desde há dias. A confusão é perigosa, e não tenho a certeza de como se explica.
Talvez as ditas cem intelectuais nunca tenham estado numa posição de subalternidade, o que já será bom sinal sobre a França. Não tenho a certeza de que conseguíssemos encontrar em Portugal cem mulheres de destaque em iguais circunstâncias. Ou talvez estejam apenas a brincar às dicotomias, o que já as aproxima perigosamente das moralistas de Facebook.
Se eu tivesse de reduzir a um só os problemas do tempo em que vivemos, provavelmente reduzia-os a esse: as dicotomias. Os clubismos. Mas eu sou homem, ocidental, educado, saudável e financeiramente independente. Que saberei, de facto, sobre isto, a não ser que assediei e me safei com o meu crime?