JOÃO SOUTO
TROCA O HÓQUEI EM PATINS PELA ESPECIALIZAÇÃO EM MEDICINA ORTOPÉDICA
Aquestão do nacionalismo não esteve sempre associada ao binómio Nação-Estado, e do ponto de vista internacional talvez a sua validade tenha sido afirmada apenas na paz da guerra de 1914-1918, pela consagração, no estatuto da Sociedade das Nações, da orientação que teve no presidente Wilson o inspirador, frustrado em todo o caso porque lhe faltou a consagração no seu país, porque o Senado se recusou a ratificar o Tratado de Versailles. Por isso, a própria SDN, para a qual a Rússia soviética não tinha sido convidada, tal como os demais vencidos, o que de facto negava era o ideal de uma “paz sem vencidos”.
Mas a evolução dos tempos identificou e autonomizou outras realidades e articulações, com populações que repudiavam o despotismo imperial ou colonial, invocando o direito à dignidade do “povo submetido”, como foi de regra o processo da descolonização, dando razão à velha observação de Lord Acton de que em regra é o Estado que forma a nação e não o contrário. O conceito unificador das diferenças foi o de querer possuir a “soberania”, que a situação, imposta pelos factos, de ela não ser coincidente com a igualdade dos poderes que a integram talvez tenha vantagem em ser frequentemente substituída pela designação mais real de “poder político”, e por isso apelando à “igual dignidade” dos povos, seja qual for a justa consagração e definição dos poderes efetivos reconhecidos.
A evolução da estrutura política do globo, fazendo crescer aceleradamente a gravidade dos conflitos resolvidos pela guerra, parece fazer alargar o reconhecimento de que, tendo rejeitado as soluções “imperiais”, a igualdade dos povos ganharia, no que respeita ao poder, em criar novas formas de organização política que, articulando os vários poderes independentes e garantindo a igual dignidade dos seus povos, diminuiria a importância secular da hierarquia baseada no poder militar. Tornaria mais eficaz a cooperação do que a submissão na ordem internacional, ambição que nesta data já faz circular o conceito orientador de “governança” global.
A União Europeia foi o modelo inspirador de outras latitudes onde a submissão colonial pelos ocidentais recebeu um ponto final, mas não os dispensando sempre de hegemonias, cuja severidade os atingidos procuraram aliviar, por vezes apoderando-se dos instrumentos criados pelos avanços das ciências e técnicas militares, de que é exemplo gravíssimo o tipo de diálogo entre os EUA e a Coreia do Norte.
E é justamente nesta conjuntura que o exemplo da União Europeia parece internamente afetado pelo conflito entre as exigências da “circunstância mundial”, que por muito tempo pareceu ignorar, e agora pela memória do passado hegemónico, não parecendo que a probabilidade seja a de o esquecimento dessa hegemonia ser acompanhado pelo Terceiro Mundo. Pareceu surpreendente, por isso, que o anúncio do discutido referendo britânico sobre a saída do Reino da União tivesse levado Marine Le Pen a expor a bandeira britânica nos lugares da sua propaganda partidária nacional. O facto é que foi desencadeado um neonacionalismo, por um lado ateado pelo America first que vem acompanhado da quebra do atlantismo, e que, por outro, as insuficiências da relação entre o aparelho burocrático e governante da União com os eleitorados e parlamentos dos Estados membros, e o turbilhão migratório que fez temer a alguns a quebra da identidade nacional animam a memória do passado, que agrava o julgamento depreciativo das instâncias de coordenação supraestaduais em relação à lembrança depurada da passada soberania histórica.
Sem ignorar que a memória das antigas “superpotências” é a mais fortalecida pelos factos, que explicam de algum modo a deriva desinformada do presidente dos EUA, o esforço do presidente Putin visando recuperar o estatuto de grandeza da Rússia, o claro projeto da China definitivamente sacudindo a espécie de menoridade que sofreu quando na ONU atribuíram a Taiwan o lugar que lhe pertence no Conselho de Segurança.
Mas esta é uma “circunstância” que aconselha à moderação os Estados europeus que foram chamados com justiça “luz do mundo”, e também com cólera os maiores agressores dos tempos modernos, porque é a União que lhes pode garantir a igual dignidade, se a praticarem no interior. Acontece que o que tem suscitado maiores inquietações é o tema dos micronacionalismos, servindo de referência a Catalunha, ameaçando haver movimentos de desmembramento dos Estados membros da União. Talvez o mais inquietante dos micronacionalismos é o de poder acentuar o regresso à memória do antes, cuja dimensão será mais visível depois das eleições que se acumulam neste ano, sobretudo nos países que entraram, sem estudos prévios, depois da queda do Muro de Berlim. Porque é esse o facto que poderá ajudar a fazer compreender que a maior omissão da União foi ter demorado a compreender que tem “circunstância”, e esta é desafiante.
A União Europeia foi o modelo inspirador de outras latitudes onde a submissão colonial pelos ocidentais recebeu um ponto final