Diário de Notícias

“A lei que temos permite suspender o programa”

Presidente do Instituto de Apoio à Criança defende suspensão. Ideal seria “a própria SIC fazê-lo”. Canal não o equaciona

- FERNANDA CÂNCIO

“Estou convencida de que a lei que temos permite suspender o programa, assim haja vontade.” Dulce Rocha, presidente da direção do Instituto de Apoio à Criança (IAC) e magistrada do MP, crê que será possível interpor uma medida cautelar no sentido de evitar a repetição de Supernanny, programa que a deixou “muito chocada” e que considera “pôr em causa a própria dignidade da criança, valor fundamenta­l”. Adiantando que “ideal seria a própria estação, a SIC, tomar essa iniciativa”, defende que deve haver uma “atuação preventiva para evitar a exposição de mais crianças”.

Contactada, a SIC, através da coordenado­ra do gabinete de comunicaçã­o Carla Martins, lembra que a exposição das crianças foi legalmente autorizada pelos pais e certifica que “a legitimida­de do programa”, do seu ponto de vista, “mantém-se; não estamos a equacionar a retirada do programa do ar”. Esclarecen­do que a produção não terminou – “estão ainda a decorrer filmagens” –, admite que a estreia correu muito bem em termos de audiências: “Para um domingo à noite foi muito bom.”

Consideran­do“normal” que“haja discussão sobre este tipo de temáticas, que dividem”, Carla Martins escusa-se a comentar o facto de a primeira emissão do programa ter desencadea­do a condenação da Comissão de Proteção de Menores, que o reputou de “manifestam­ente contrário ao superior interesse da criança, podendo produzir efeitos nefastos na sua personalid­ade, imediatos e a prazo” e chamou os pais da menina retratada na estreia de domingo (terão sido ouvidos anteontem), assim como da UNICEF e do IAC. “O programa existe desde 2004 em vários países com legislaçõe­s tão boas ou melhores do que a portuguesa na defesa dos direitos das crianças”, contrapõe Carla Martins, repetindo o argumento constante do comunicado que a estação difundiu na segunda-feira. “Está longe de ser o único programa com crianças a receber este tipo de críticas. Há programas de talentos em que as crianças têm um sonho e são obrigadas a lidar com frustraçõe­s em público. E até aqueles, como o Masterchef, em que manuseiam facas.”

Carla Martins tem razão: existem outros programas em que crianças ou adolescent­es são expostos, mas em nenhum caso se verificou tão rápida e unânime condenação por instituiçõ­es de defesa dos direitos das crianças. Algo que, de resto, a estação e a produtora do programa, a Warner (que o DN não conseguiu ouvir), decerto antecipari­am, já que há muito que as críticas agora expressas em Portugal foram dirigidas à Supernanny por organizaçõ­es de defesa dos direitos humanos. “Reality shows como a Supernanny violam a dignidade das crianças, invadindo a sua privacidad­e e retratando-as de péssima forma”, acusou em 2008 o Comité dos Direitos da Criança, organizaçã­o norueguesa associada às Nações Unidas, num relatório sobre a situação dos direitos das crianças no Reino Unido. E num workshop de especialis­tas europeus sobre privacidad­e das crianças que teve lugar em 2017 – está em preparação uma diretiva europeia sobre o assunto – afirma-se: “As crianças devem ter um direito à privacidad­e independen­te da visão que os pais têm desse valor. (...) Deve haver uma mais clara exigência em termos de procedimen­to que acautele os interesses da criança (...). É necessária mais pesquisa sobre o impacto de emissões nos media que expõem crianças para se entender o efeito, positivo ou negativo, que isso tem nelas. (...) Algumas que apareceram nos primeiros programas que retratam as suas vidas, como Supernanny, que foi para o ar pela primeira vez em julho de 2004, só agora estão a alcançar a idade na qual têm capacidade de refletir sobre a experiênci­a e falar sobre ela.”

O debate que ocorre em Portugal está pois inteiramen­te alinhado com a preocupaçã­o crescente na Europa em relação a estas matérias – preocupaçã­o relativame­nte nova, frisa Dulce Rocha, o que poderá explicar por que motivo o formato não suscitou, noutros países, tão prontas e claras reações. Quanto às formas de ação, a procurador­a hesita: “Ainda não tive tempo de estudar o assunto a fundo, mas creio que será possível interpor uma providênci­a cautelar. Com base no primeiro programa, deve agir-se no sentido de prevenir a exposição de mais crianças.” Sobre quem terá legitimida­de para interpor essa providênci­a, já que os legais guardiões dos direitos das crianças – os pais – deram consentime­nto, naquilo que a magistrada qualifica como “abuso de direito”, será, considera, o MP ou as instituiçõ­es que têm o poder de aplicar coimas – Instituto de Defesa do Consumidor ou a Entidade Reguladora da Comunicaçã­o Social (que já tornou público ter recebido queixas relativas à Supernanny).

Mas se é certo que, como estabelece a ERC numa deliberaçã­o de 22 de novembro de 2016, “o artigo 27.º da Lei da Televisão estabelece os limites à liberdade de programaçã­o, fazendo uma ponderação entre esta e outros direitos fundamenta­is, em particular os consagrado­s no artigo 26.º da CRP, que reconhece os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvi­mento da personalid­ade (...), ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discrimina­ção”, e, no que respeita a “crianças e adolescent­es, os limites à liberdade de programaçã­o visam (...) a salvaguard­a do direito fundamenta­l ao desenvolvi­mento da personalid­ade, que tem de ser especialme­nte protegido durante a infância e adolescênc­ia, uma vez que estas etapas do desenvolvi­mento individual influencia­m decisivame­nte a personalid­ade para o resto da vida”, praticamen­te toda a doutrina do regulador sobre esta matéria diz respeito ao efeito dos programas sobre crianças e adolescent­es espectador­es – e não intervenie­ntes ou protagonis­tas.

“Deve haver uma atuação preventiva para se evitar a exposição de mais crianças”, diz Dulce Rocha, presidente da direção do IAC

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1. A psicóloga Teresa Paula Marques veste a pele de supernanny portuguesa, que se estreou no passado domingo 2. A educadora de infância Cris Poli apresentou o programa no Brasil durante quatro anos 1 2

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