“A lei que temos permite suspender o programa”
Presidente do Instituto de Apoio à Criança defende suspensão. Ideal seria “a própria SIC fazê-lo”. Canal não o equaciona
“Estou convencida de que a lei que temos permite suspender o programa, assim haja vontade.” Dulce Rocha, presidente da direção do Instituto de Apoio à Criança (IAC) e magistrada do MP, crê que será possível interpor uma medida cautelar no sentido de evitar a repetição de Supernanny, programa que a deixou “muito chocada” e que considera “pôr em causa a própria dignidade da criança, valor fundamental”. Adiantando que “ideal seria a própria estação, a SIC, tomar essa iniciativa”, defende que deve haver uma “atuação preventiva para evitar a exposição de mais crianças”.
Contactada, a SIC, através da coordenadora do gabinete de comunicação Carla Martins, lembra que a exposição das crianças foi legalmente autorizada pelos pais e certifica que “a legitimidade do programa”, do seu ponto de vista, “mantém-se; não estamos a equacionar a retirada do programa do ar”. Esclarecendo que a produção não terminou – “estão ainda a decorrer filmagens” –, admite que a estreia correu muito bem em termos de audiências: “Para um domingo à noite foi muito bom.”
Considerando“normal” que“haja discussão sobre este tipo de temáticas, que dividem”, Carla Martins escusa-se a comentar o facto de a primeira emissão do programa ter desencadeado a condenação da Comissão de Proteção de Menores, que o reputou de “manifestamente contrário ao superior interesse da criança, podendo produzir efeitos nefastos na sua personalidade, imediatos e a prazo” e chamou os pais da menina retratada na estreia de domingo (terão sido ouvidos anteontem), assim como da UNICEF e do IAC. “O programa existe desde 2004 em vários países com legislações tão boas ou melhores do que a portuguesa na defesa dos direitos das crianças”, contrapõe Carla Martins, repetindo o argumento constante do comunicado que a estação difundiu na segunda-feira. “Está longe de ser o único programa com crianças a receber este tipo de críticas. Há programas de talentos em que as crianças têm um sonho e são obrigadas a lidar com frustrações em público. E até aqueles, como o Masterchef, em que manuseiam facas.”
Carla Martins tem razão: existem outros programas em que crianças ou adolescentes são expostos, mas em nenhum caso se verificou tão rápida e unânime condenação por instituições de defesa dos direitos das crianças. Algo que, de resto, a estação e a produtora do programa, a Warner (que o DN não conseguiu ouvir), decerto antecipariam, já que há muito que as críticas agora expressas em Portugal foram dirigidas à Supernanny por organizações de defesa dos direitos humanos. “Reality shows como a Supernanny violam a dignidade das crianças, invadindo a sua privacidade e retratando-as de péssima forma”, acusou em 2008 o Comité dos Direitos da Criança, organização norueguesa associada às Nações Unidas, num relatório sobre a situação dos direitos das crianças no Reino Unido. E num workshop de especialistas europeus sobre privacidade das crianças que teve lugar em 2017 – está em preparação uma diretiva europeia sobre o assunto – afirma-se: “As crianças devem ter um direito à privacidade independente da visão que os pais têm desse valor. (...) Deve haver uma mais clara exigência em termos de procedimento que acautele os interesses da criança (...). É necessária mais pesquisa sobre o impacto de emissões nos media que expõem crianças para se entender o efeito, positivo ou negativo, que isso tem nelas. (...) Algumas que apareceram nos primeiros programas que retratam as suas vidas, como Supernanny, que foi para o ar pela primeira vez em julho de 2004, só agora estão a alcançar a idade na qual têm capacidade de refletir sobre a experiência e falar sobre ela.”
O debate que ocorre em Portugal está pois inteiramente alinhado com a preocupação crescente na Europa em relação a estas matérias – preocupação relativamente nova, frisa Dulce Rocha, o que poderá explicar por que motivo o formato não suscitou, noutros países, tão prontas e claras reações. Quanto às formas de ação, a procuradora hesita: “Ainda não tive tempo de estudar o assunto a fundo, mas creio que será possível interpor uma providência cautelar. Com base no primeiro programa, deve agir-se no sentido de prevenir a exposição de mais crianças.” Sobre quem terá legitimidade para interpor essa providência, já que os legais guardiões dos direitos das crianças – os pais – deram consentimento, naquilo que a magistrada qualifica como “abuso de direito”, será, considera, o MP ou as instituições que têm o poder de aplicar coimas – Instituto de Defesa do Consumidor ou a Entidade Reguladora da Comunicação Social (que já tornou público ter recebido queixas relativas à Supernanny).
Mas se é certo que, como estabelece a ERC numa deliberação de 22 de novembro de 2016, “o artigo 27.º da Lei da Televisão estabelece os limites à liberdade de programação, fazendo uma ponderação entre esta e outros direitos fundamentais, em particular os consagrados no artigo 26.º da CRP, que reconhece os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade (...), ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”, e, no que respeita a “crianças e adolescentes, os limites à liberdade de programação visam (...) a salvaguarda do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade, que tem de ser especialmente protegido durante a infância e adolescência, uma vez que estas etapas do desenvolvimento individual influenciam decisivamente a personalidade para o resto da vida”, praticamente toda a doutrina do regulador sobre esta matéria diz respeito ao efeito dos programas sobre crianças e adolescentes espectadores – e não intervenientes ou protagonistas.
“Deve haver uma atuação preventiva para se evitar a exposição de mais crianças”, diz Dulce Rocha, presidente da direção do IAC