Diário de Notícias

Dee Rees “Um cineasta tem de ter um ponto de vista”

- RUI PEDRO TENDINHA, em Toronto

Baseado no romance de Hillary Jordan que foca o regresso da Grande Guerra de dois soldados americanos aos lamaçais do Mississipi, Mudbound – As Lamas do Mississipi mostra-nos uma América do pós-guerra em plena tensão racial. O filme realizado por Dee Rees pode ainda entrar na corrida aos Óscares e na América é uma aposta da Netflix, tendo tido lançamento limitado nas salas. A cineasta afro-americana fala ao DN na véspera da estreia do filme em Portugal. Um exclusivo nacional com uma artista que filma o racismo americano. Uma das surpresas do filme é a cantora Mary J. Blidge numa personagem tão pesada. Porque a escolheu para esta mãe de família? Acreditei nela. Quis que a personagem tivesse uma certa vulnerabil­idade interior e que houvesse sempre vida naqueles olhos. Sempre percebi que a Mary tinha essa profundida­de, bastava ter ido a um dos seus concertos. Ela literalmen­te vive cada linha de diálogo que profere. O ataque racista de Charleston poderá ser um sinal de que a América está cada vez mais racista. Como cineasta afro-americana sente esse racismo? O racismo não muda. Sempre fomos os mesmos racistas de sempre. A única diferença é que agora esse racismo está mais assumido. A América nunca soube lidar com a sua história. Nunca ultrapassá­mos o facto de termos massacrado pessoas nem de termos roubado a terra. Mais importante: nunca ultrapassá­mos o facto de termos ido buscar escravos, chamando a isso “trabalho livre”. Além do mais, a sociedade americana nunca refletiu sobre como o racismo ficou codificado na nossa maneira de pensar... Quando as pessoas tinham o mesmo emprego e ganhavam salários diferentes, isso nunca foi alvo de discussão. Os sinais “para brancos apenas” não eram discutidos. Tudo isso fez que o racismo fosse negado, mas está lá. Mas para muitos o extremo ódio desse episódio causou estranheza. Será que Hollywood deveria fazer mais filmes sobre o racismo? Não, se forem filmes didáticos e pregadores. Têm de ser filmes sobre pessoas e relações, capazes de terem ideias distanciad­as. Quando se filma os anos 1940 temos de fazer um comentário sobre a situação na época. Porém, neste filme acabo por estar também a fazer um comentário sobre o que se passa hoje em termos de racismo. É inevitável. Spike Lee foi o artista afro-americano que, no começo da carreira, através do seu cinema, acabou por ser porta-estandarte do orgulho negro e aquele que melhor colocou o assunto do racismo no grande ecrã... Sim, mas foi uma voz para todos os americanos. No começo, Spike Lee filmava a América total. Não o quer colocar numa caixa... Não! Cada cineasta deve ter uma voz. Dou um exemplo nos cineastas negros: o Spike Lee nunca teve nada que ver com o John Singleton, como também o Barry Jenkins faz agora um cinema completame­nte distinto... São cineastas com pontos de vista diferentes. Como cineasta descreve-se como alguém que não quer apenas entreter mas sim ter um ponto de vista? Um cineasta tem de ter um ponto de vista. Se um cineasta é ambivalent­e não deveria filmar... Para mim, o que contou sempre é a maneira como respondemo­s ao material. Se não houver uma ideia que queiramos explorar ou um ângulo pessoal, não vale a pena! Este é um filme Netflix na América. O futuro do cinema passa pela estratégia de apostar no cinema através da exibição fora das salas? Há cinco anos ainda estávamos a discutir se a passagem dos 35 mm para o digital iria mudar alguma coisa, sobretudo nos festivais. Agora, todos os festivais só querem passar filmes em DCP [o sistema digital]. A vantagem da Netflix é que as pessoas em casa estão a ver um filme com a sua família. Não se perde aquela experiênci­a de ver cinema em grupo, em comunidade. Isso é mais importante do que o tamanho do ecrã. O que conta aqui para um artista é a questão do acesso à arte. Caramba! É importante que as pessoas vejam o nosso trabalho. Se o meu Pariah não tivesse ido para Netflix muito menos gente teria oportunida­de de o ver.

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