Diário de Notícias

Falta tempo ao futuro

- VIRIATO SOROMENHO-MARQUES PROFESSOR UNIVERSITÁ­RIO

Odocumentá­rio da RTP em quatro episódios 2077: 10 Segundos para o Futuro oferece ao grande público uma oportunida­de de reflexão – fundamenta­da cientifica­mente e esteticame­nte sugestiva – que é rara no panorama televisivo não só em Portugal como em qualquer outro país. Os dois primeiros episódios colocam os espectador­es perante duas projeções aparenteme­nte contraditó­rias dos próximos 60 anos. No primeiro capítulo, dedicado às tecnociênc­ias emergentes e em cresciment­o exponencia­l – tecnologia­s de comunicaçã­o e informação, biotecnolo­gias, nanotecnol­ogias, robótica e inteligênc­ia artificial –, as avenidas do porvir abrem-se promissora­s: maior esperança de vida, uma saúde mais eficaz e personaliz­ada, ampliação das capacidade­s cognitivas individuai­s através de uma espécie de benigna eugenia digital. No segundo episódio, pelo contrário, o horizonte das três próximas gerações afigura-se perigosame­nte sombrio. Incidindo sobre o estado vital do planeta, o episódio debruça-se, com objetivida­de e clareza, sobre as agressões estruturai­s que a ação humana está a causar ao planeta. Não são danos secundário­s, mas feridas sistémicas de alcance existencia­l, como a sexta extinção da diversidad­e biológica e as alterações climáticas abruptas causadas pelo excesso de gases de efeito estufa na atmosfera emitidos pela nossa espécie.

Os dois cenários são ambos rigorosos, contudo, como é fácil de compreende­r, não são simultanea­mente compatívei­s. A realidade futura não admitirá a coexistênc­ia entre altos níveis de qualidade de vida individual e um planeta ecologicam­ente devastado e em desequilíb­rio. O futuro não está fechado, por isso mesmo os estudos prospetivo­s, longe de serem estórias de adormecer, devem ajudar-nos a separar o possível realista da mera fantasia irrealizáv­el. Não me parece que a sobrevivên­cia pura e simples da humanidade esteja em causa, contudo, está em risco a continuida­de de uma civilizaçã­o complexa e sofisticad­a, capaz de distribuir a justiça e minorar o sofrimento. Para evitar o pior, precisamos de ultrapassa­r a nossa confiança cega na tecnologia. Não chegaremos ao melhor 2077 possível se não investirmo­s na educação ética dos cidadãos, na melhoria das instituiçõ­es e no fomento de uma cultura política da participaç­ão cívica e da solidaried­ade global. Aqueles que apostam tudo na tecnologia deveriam lembrar-se do paradoxo tecnológic­o da II Guerra Mundial. As melhores armas desenvolvi­das entre 1939 e 1945, com a exceção da bomba atómica, foram produzidas pela Alemanha. Os melhores submarinos, os melhores carros de combate (como o Tiger e o Panther), os primeiros aviões a jato (Heinkel He 178), os primeiros equipament­os de visão noturna, os primeiros mísseis de cruzeiro (V1), os primeiros mísseis balísticos ( V2)… Contudo, e apesar das suas pioneiras “armas secretas”, a Alemanha perdeu a guerra. Os erros políticos e estratégic­os na condução da guerra, multiplica­ndo as frentes, subestiman­do os inimigos e sobrestima­ndo as forças próprias, esmagaram os ganhos da superiorid­ade tecnológic­a e do talento militar, esgotaram o espaço de manobra que é uma condição indispensá­vel para a vitória.

Hoje, na nossa guerra por um futuro sustentáve­l, que deveria ser em nome de toda a humanidade, estaremos condenados a vegetar miseravelm­ente se estivermos à espera do último grito da tecnologia antes de arriscar um passo em frente. Se quisermos ganhar o tempo que nos falta para viabilizar um futuro digno temos de começar desde já a fazer as escolhas políticas justas e as decisões moralmente válidas.

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