Vem aí o grande dia da batalha. A canalha está pronta. E nós?
Jorge Silva Melo escreveu uma peça em torno de Albergue Nocturno, de Máximo Gorki, e leva-a ao palco do Teatro Nacional D. Maria II. No plano de trás é uma espécie de fresco de miseráveis, à frente um coro que os denuncia
“OK. Até já”, ouve-se Jorge Silva Melo dizer aos seus atores antes de o pano cair no palco do Teatro Nacional D. Maria II. Dali a momentos entraria em marcha a peça O Grande Dia da Batalha num dos ensaios que antecedeu a estreia de hoje à noite. Silva Melo chamou-lhe “variações sobre o Albergue Nocturno, de Máximo Gorki”. Variações escritas e encenadas por si em torno dessa peça maior do autor russo cuja pista, notava o encenador e diretor artístico dos Artistas Unidos, está já no seu pseudónimo. “Gorki quer dizer amargo, azedo. E Máximo é máximo. O mais azedo, o mais amargo, o mais triste, o mais melancólico, foi o pseudónimo que ele escolheu. E a peça é realmente muito amarga.”
O Grande Dia da Batalha, nome que vem de um poema de Gomes Leal, “A Canalha”, e que ouviremos da boca de João Pedro Mamede – Buscando o grande dia da batalha. / É ela, é ela, a lívida Canalha! – põe em cena 20 atores. De Paula Mora, do elenco do D. Maria, a José Neves, ou jovens atores como Sara Inês Gigante. São eles que compõem ou povoam esse grande fresco de “Miseráveis”, desgraçados, criados por Gorki, e é desse fresco que alguns deles partem para o coro formado à boca de cena. Um coro de vagabundos que evoca os refugiados, os desempregados, os assassinados. “Somos aqueles que não cabem na tua história” ou “Somos 100, somos 200, somos os 10 mil que morreram”, ouve-se. E depois vêm nomes de cidades. Alepo, Homs, ou aquelas em cujos portos desembarcam os que fogem das primeiras: Lesbos, Lampedusa.
Foi o encenador quem “foi injetando” essa estrutura dupla. “Fui dizendo aos atores: é como se a peça do Gorki fosse um filme a preto e branco que está lá ao fundo, e aqui à frente viesse uma orquestra tocar música de documentário, uma música recente.” Aqueles vagabundos, acrescenta, “vêm falar connosco daquilo que nos preocupa agora: o que é que nós andamos a fazer com este lixo da humanidade. Em 1904 estavam para ali, e agora estão a morrer no Mediterrâ- neo, estão nos campos, nas ilhas. O que é que estamos a fazer com essas pessoas que consideramos lixo, enquanto continuamos mais ou menos bem na vida, com crise a mais ou crise a menos. Estamos a considerar que algumas pessoas não merecem viver”.
Silva Melo começou por trabalhar este texto em 2001, para o levar à cena n’A Capital; mas, recorda, “o [ator] Paulo Claro morreu em 4 de maio e abandonámos os dois projetos”. Todavia, a sua relação com o texto começou ainda antes, em 1970. Era ele miúdo, cerca de 20 anos, quando o viu na Trindade, pelo Grupo Mérito Dramático Avintense, encenado por Monteiro Meireles. Nessa noite não dormiu.
O convite de Tiago Rodrigues, diretor do D. Maria, para montar uma peça escrita por si a partir de um tema clássico, algo que Silva Melo fez nos anos 90 com Prometeu e onde o próprio Tiago Rodrigues foi seminarista nesse processo, trouxe de volta o Albergue Nocturno. E ali estamos, com Nástia a suspirar agarrada a um romance de amores fatais, com as bebedeiras gerais, com as falas esquecidas e recordadas do Ator, com Ana, moribunda, a quem o marido tanto bateu, com Pepel, o ladrão, afinal apaixonado pela irmã da amante, Natacha.
Gorki, diz Silva Melo, “é um mestre em cruzar destinos, em pôr-nos a olhar para 20 pessoas e conseguimos perceber as características, as vontades, os desejos de cada uma delas em simultâneo. Ele traz isso do romance, não é do teatro. Claro que ele tinha feito também aquilo a que agora chamamos grandes reportagens. Tinha andado realmente pelas estradas da Rússia, em barcos, em cargueiros, em albergues destes, naquilo a que ele chamou ‘as minhas universidades’”. Depois irrompe o coro. Às vezes as vozes são dos assassinados, outras vezes são dos assassinos. Aqui e ali, uma canção: Oh welche Lust! , coro dos prisioneiros numa ode à liberdade em Fidelio, de Beethoven; ou Bella Ciao, canção que se tornou um símbolo da resistência italiana.
“É engraçado pensar que é uma peça que não só originou encenações como originou outros textos. Porquê? Porque é insuficiente? Porque apela à escrita? Porque dá vontade de escrever mais e de escrever lá as histórias que nos angustiam? Não conheço muitas peças que tenham gerado outros peças. Conheço os mitos gregos.” Silva Melo elenca algumas obras que Albergue Nocturno originou. Obras de Jean Renoir, Kurosawa, Tennesse Williams, Eugene O’Neill. Como se, através dos tempos, esse fresco de miseráveis, essa canalha, e o coro que lhe corresponde, estivesse sempre lá. Ces gens-là, como cantou Jacques Brel. Essa gente.
O fundador dos Artistas Unidos diz-se inquieto e fala de “uma incerteza muito grande” em relação ao que se seguirá a este O Grande Dia da Batalha. “Estamos em grandes dificuldades com as incertezas do Ministério [da Cultura]. Tínhamos uma programação para o Teatro da Politécnica mas não sabemos como é que vamos continuar. Em princípio devíamos estrear no dia 7 de março uma peça que se chama O Teatro da Amante Inglesa, de Marguerite Duras. Neste momento não sei se conseguimos.”
“É como se a peça fosse um filme a preto e branco que está lá ao fundo, e aqui à frente viesse uma orquestra tocar música recente”
O GRANDE DIA DA BATALHA Entre hoje e 25 de fevereiro. Quarta-feira às 19.00, de quinta-feira a sábado às 21.00 e domingo às 16.00. Bilhetes entre 5 e 17 euros.