Diário de Notícias

Ladrões de Bicicletas: a realidade a preto e branco

- JAIME NOGUEIRA PINTO ESCRITOR E HISTORIADO­R Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

Os tempos de decadência, de confusão e pobreza de ideias trazem-nos fatalmente – e às vezes perigosame­nte – a nostalgia de outros tempos. A primeira vez que vi os Ladrões de Bicicletas foi numas termas em Entre-os-Rios, teria uns 6 anos. Não sei que marcas então me deixou, porque o fui vendo ao longo dos anos, mas algumas terá deixado. O que vemos e fazemos na infância reveste-se de uma luz, de um impressivo preto e branco que depois vamos dourando ou denegrindo.

Mas os perigos e as armadilhas da nostalgia, tantas vezes doentio caminho para a autocontem­plação narcisista, autocomise­ração ou fuga à realidade, não nos podem fechar à fecunda nostalgia estética e ética que vem da comunhão com obras – livros e filmes – que marcaram e marcam as nossas vidas. Obras que nos arrancam do quotidiano para o cimo de um monte – “lugares onde sopra o Espírito”, diziam S. Paulo e S. João da Cruz ou o agnóstico Maurice Barrès – não para fugir à realidade mas para alcançar um longe ou distância que nos confrontem com o essencial.

Foi essa a nostalgia que senti ao ver, pela quarta ou quinta vez, Ladri di Biciclette, deVittorio de Sica e Cesare Zavattini. Convidou-me um amigo que, para recordar um pai cinéfilo, resolveu levar ao cinema um grupo de familiares e amigos; um filho que quis voltar a “ir ao cinema com o pai” e que fôssemos com ele. Percebi bem o sentido da memória e do gesto. Há uns anos morreu um amigo meu, realizador de cinema, e além de lhe rezar por alma, também fui ao cinema, por ele e com ele, ver o último filme que tinha rodado.

Ladrões de Bicicletas é, muito apropriada­mente, um filme de pai e filho; um desses tratados sobre a condição humana, a fragilidad­e do heroísmo e a irmandade na pobreza e na queda, que nos confrontam com encontros e desencontr­os – entre pais e filhos, ladrões e heróis, rótulos e verdades fundas, dignidade e humilhação, culpa e perdão.

Sob a luz mágica do preto e branco, Ladrões de Bicicletas leva-nos numa viagem poética e trágica pela Roma dos anos de chumbo – ainda com a devastação dos bombardeam­entos aliados e as feridas abertas de uma guerra perdipecáv­eis da, seguida de guerra civil. É o périplo de um homem e do filho pequeno em busca de uma bicicleta roubada, que, para o protagonis­ta, Antonio Ricci, é condição de acesso à dignidade e ao pão de cada dia e que por isso assume as proporções de um graal.

O neo-realismo traz nomes sagrados – De Sica, Rosselini,Visconti, Fellini. Na sua admirável memória do cinema italiano – Viaggio in Italia, MyVoyage to Italy (1999) –, Martin Scorsese passa por todos com a ternura e admiração de um filho ou discípulo grato. De Sica, Rosselini eVisconti já tinham feito filmes no tempo do fascismo. Entre 1942-43, antes da trilogia pós-guerra (Roma Cittá Aperta, Paisá e Germania Anno Zero), Rosselini produzira uma trilogia bélica (La Nave Bianca, Un Pilota Ritorna e L’Uomo della Croce) e Visconti dirigira Ossessione, (adaptado do romance de James McCain O Carteiro Toca sempre DuasVezes, 1934). De Sica era actor desde 1932 e estreara-se a realizador em 1939. Este filme é de 1948 e estreou-se em Portugal em 1950.

De Sica foi um dos pioneiros do tema da relação entre homens e filhos homens, relação feita de reservas, pudores, silêncios e incompreen­sões, mas também de comunhão, de ternura e de cumplicida­de.

Como o Kid do Charlot, o filho pequeno do protagonis­ta de De Sica, o desemprega­do Antonio Ricci, segue o pai na demanda, tentando seguir-lhe as pisadas, sempre em passo de corrida, sempre olhando para cima, sempre sondando o pai-herói na aventura da procura e na tragédia. Só na queda, com o pai no chão, acusado por todos, o vai olhar pela primeira vez de cima para baixo, num pranto desnortead­o.

A história começa numa periferia de habitações sociais, de casas populares inaugurada­s nos anos 1930, na zona de Val Melaina, bem longe da Roma imperial e festiva do vinténio mussolinia­no, da cidade aberta e dilacerada de Rosselini ou da Roma recriada por Felini. Ali, na agência de emprego, Antonio (Lamberto Maggiorani) consegue um lugar de colador de cartazes para o qual é exigida uma bicicleta. A mulher decide empenhar os lençóis para levantar a bicicleta de Antonio do prego. Na casa de penhores, os lençóis dos pobres e dos aflitos amontoam-se até ao tecto.

O novo local de trabalho do orgulhoso colador de cartazes, a quem é dada a dignidade de uma farda, um boné e um escadote, fica já no centro histórico, esquina daVia del Corso com aVia Montecatin­i. Mas Antonio é roubado a colar o primeiro cartaz (uma Rita Hayworth gigantesca e sedutora, em Gilda) e persegue o ladrão pelo cruzamento daVia Francesco Crispi com aVia del Tritone até lhe perder o rasto no túnel. Depois, começa a busca, primeiro com a patética ajuda dos amigos no mercado informal da PiazzaVitt­orio, onde se vendem bicicletas às peças, depois num outro mercado, em Porta Portese. É lá que Antonio descobre o ladrão a falar com um velho. O ladrão foge e pai e filho correm atrás do velho até à Igreja Santi Nereo e Achilleo, perto das Termas de Caracalla, já na periferia. Na sacristia da igreja, há um serviço voluntário de barbearia para antes da missa e sopa dos pobres depois, servida por cavalheiro­s e senhoras da sociedade, todos de im- aventais brancos. Bruno cobiça a sopa mas segue com o pai na perseguiçã­o. O velho denuncia o ladrão e diz-lhe onde mora. Entretanto, Antonio perde o filho de vista e corre desesperad­o pela margem do Tibre, sob a Ponte Duca d’Aosta, perto da Ara Pacis, pensando que se poderá ter afogado.

E da periferia voltamos ao centro histórico para as cenas finais: Antonio, já com o filho, encontra o jovem ladrão que foge e se esconde numa casa de alterne no Vicollo delle Capannelle, entre prostituta­s em intervalo de almoço. Escapa-se depois para casa da mãe, no Vicollo della Paglia, onde entra atrás dele. Olha em volta e ouve a mãe do larápio: a casa é tão pobre como a dele e a miséria é a mesma. Os vizinhos do ladrão protegem-no e Antonio é expulso pela força, mas resolve não apresentar queixa à polícia.

É domingo. Derrotado e desolado, Antonio Ricci e o cada vez mais angustiado Bruno vão ter ao Estádio Nacional, onde, no fim do jogo, milhares de bicicletas estacionad­as são recolhidas pelos adeptos eufóricos. No bulício alegre do fim da tarde, a solidão e a tragédia de Antonio tornam-se mais densas. E vem a tentação: bem próximo, encostada a uma porta, no cruzamento da Via Flaminia com a Via Pitro di Cortona, está uma bicicleta. Aparenteme­nte o dono está longe. Pronto a ceder à tentação, Antonio dá a Bruno dinheiro para o eléctrico e manda-o para casa. Julgando-se longe do olhar do filho, rouba a bicicleta e desata a pedalar; mas o dono volta subitament­e: “Ladrão! Ladrão!”, e todos se precipitam na perseguiçã­o do novo ladrão de bicicletas. Deitam-no ao chão e quando estão quase a linchá-lo param ao choro do pequeno Bruno, que, tendo perdido o eléctrico, se deixara ficar para trás. Levam então Antonio para a esquadra, mas a vítima, um homem maduro com ar de pequeno burguês, vendo o desesperad­o choro do filho, não apresenta queixa contra o pai e manda-o em paz.

Bruno segue para casa ao lado do pai, num silêncio denso. Caminham devagar, a par e passo, e o pai dá-lhe a mão, numa cumplicida­de de depois da queda, num encontro além quedas e desencontr­os feito já de compreensã­o, perdão e autoperdão.

Ladrões de Bicicletas é uma memória de muitas coisas e um monumento vivo a outras – ao cinema italiano e aos seus grandes, a Roma, cidade única, e aos romanos destes anos, em que a “doce vida” de uns servia de álibi à vida amarga da maioria. Mas é, sobretudo, um hino à condição humana na sua crueldade e injustiça, no orgulho e preconceit­o mas também na generosida­de e sede de comunhão, na humildade e entrega – e na demanda da verdade funda das pessoas e das coisas. Uma história e um filme únicos. Um lugar onde “sopra o vento” ou onde, na distância de um luminoso preto e branco, todos nos vemos naquele filho e naquele pai.

Ladrões de Bicicletas é muito apropriada­mente um filme de pai e filho; um desses tratados sobre a condição humana, a fragilidad­e do heroísmo e a irmandade na pobreza e na queda, que nos confrontam com encontros e desencontr­os

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