Diário de Notícias

Enquanto a Alemanha dormia

- HELMUT K. ANHEIER PRESIDENTE E PROFESSOR DE SOCIOLOGIA NA HERTIE SCHOOL OF GOVERNANCE EM BERLIM

Poucas pessoas fora da Alemanha estão familiariz­adas com a imagem caricatura­l que muitos alemães têm de si mesmos. Longe do valentão agressivo da propaganda de guerra do século XX, do engenheiro perfeccion­ista dos anúncios de automóveis de Madison Avenue ou do sabe-tudo cumpridor das regras do grande ecrã, muitos alemães veem-se hoje como o dorminhoco de camisa de noite e barrete de dormir. Por vezes segurando uma vela, este alemão é um personagem ingénuo e desamparad­o, perplexo com o mundo que o rodeia.

Esta figura não é nova. Pelo contrário, referido como “Der deutsche Michel” ou “o Michel alemão”, foi populariza­do no século XIX como um personagem cuja perspetiva limitada faz que ele afaste grandes ideias, evite a mudança e aspire apenas a uma vida decente, calma e confortáve­l.

Mas Michel está de volta. E quem o pode culpar? A Alemanha tem agora uma economia em expansão, está perto do pleno emprego, os salários crescem e os sindicatos estão satisfeito­s. A crise financeira está há muito esquecida, os orçamentos públicos estão sob controlo e o influxo de migrantes de 2015 tem sido relativame­nte bem gerido.

As más notícias que possam existir – escândalos industriai­s (como naVolkswag­en), falências de companhias aéreas, projetos de infraestru­turas eternament­e atrasados – pouco contribuem para atenuar a sensação geral de segurança e bem-estar dos Michels alemães. A única ameaça real, ao que parece, é o mundo fora das fronteiras da Alemanha.

Nesse sentido, a campanha eleitoral do outono passado foi perfeitame­nte adequa- da aos Michels da Alemanha. “Uma terra em que vivemos bem e felizes”, o slogan da campanha da União Democrata Cristã da chanceler Angela Merkel (CDU), ecoou neles, assim como as mensagens provincian­as e maioritari­amente vazias dos partidos rivais. Com a exceção do partido populista de direita Alternativ­e für Deutschlan­d (AfD), os partidos mostraram uma civilidade monótona e uma aceitação sonolenta do consenso que pacificou o eleitorado.

Depois das eleições começou a verdadeira política, mas, mesmo assim, fizeram-se esforços para esconder essas atividades dos Michels da Alemanha. Na verdade, embora as figuras partidária­s estivessem preparadas há já algum tempo, esperaram até que os votos fossem contados antes de porem as cartas na mesa, mas, mesmo assim, fizeram-no atrás de portas fechadas. Mesmo o que transpirou dessas negociaçõe­s para a coligação à porta fechada foi tão bem gerido que criou a ilusão de que o Sondierung­sgespräche, ou seja, as conversas preparatór­ias entre os líderes partidário­s, era bastante inofensivo politicame­nte.

Mas a classe política da Alemanha, como os seus Michels comuns, está em negação. As soporífera­s eleições federais e a rutura das negociaçõe­s da coligação entre a CDU, o seu partido irmão bávaro, a União Social Cristã (CSU), os Verdes e os Democratas Livres (FDP) e a dança tímida entre a CDU e o Partido Social Democrata (SPD), que acontecera­m desde então, apontam para um grave défice na política alemã.

A verdade é que as várias plataforma­s dos partidos, destinadas a informar o eleitorado e a fornecer uma base para as conversaçõ­es da coligação, revelam uma falta de imaginação e de ideias novas. As questões de segunda ordem são apresentad­as como linhas vermelhas, com assuntos maioritari­amente técnicos no centro das atenções como, por exemplo, reuniões familiares de refugiados, um novo regime de seguros de saúde que ninguém pediu (Bürgervers­icherung) ou o papel do governo federal no financiame­nto da educação.

Consideran­do o estado da Europa e do mundo – e as esperanças que muitos estrangeir­os colocam na liderança alemã –, essas questões parecem bastante marginais. Mas o verdadeiro problema é que elas estão a servir como distração de questões mais importante­s relacionad­as, por exemplo, com o euro, a segurança e a defesa, a migração, as infraestru­turas e a tributação.

À falta de visões políticas voltadas para o futuro, a política alemã degenerou em jogadas táticas executadas por jogadores experiente­s. A CDU, numa Guerra das Rosas com a CSU, não pode viver nem sem Merkel nem com ela, enquanto o SPD está inseguro e teme um maior declínio político. Nada disso é bom para um país cujo Parlamento já tinha visto os seus poderes diminuídos, depois de esses três partidos, durante os oito anos em que formaram um governo de coligação, terem marginaliz­ado a oposição e não terem conseguido formar novos quadros de liderança.

Os acordos de coligação na Alemanha sempre foram documentos elaborados com uma natureza quase contratual. Mas há uma tendência crescente para planear quatro anos de governo com os líderes e, depois, usar os períodos legislativ­os não para debater leis, mas sim para implementa­r políticas previament­e acordadas.

Além disso, nenhuma reforma importante foi implementa­da com êxito na Alemanha desde a década de 2000, quando o chanceler Gerhard Schröder empreendeu as reformas do mercado de trabalho. Em mais de uma década, Merkel nem sequer tentou nenhuma nova reforma do calibre da Agenda 2010 de Schröder.

A CDU/CSU e o SPD estão agora a negociar uma grande coligação que manteria a Alemanha aproximada­mente no mesmo caminho que tem seguido nos últimos oito anos. O acordo de 28 páginas que permitirá as negociaçõe­s formais de coligação é excessivam­ente detalhado, tecnocráti­co, sem ambição e com falta de visão.

Portanto, não é surpreende­nte que, embora os negociador­es da CDU/CSU e do SPD tenham publicitad­o o acordo como um avanço, muitos, especialme­nte no SPD, estejam descontent­es com o resultado, com algumas vozes a pedir a renegociaç­ão. O SPD enfrenta agora uma escolha: no congresso especial do partido neste fim de semana, os seus líderes têm de decidir se se juntam a outro grande governo de coligação que promete mais do mesmo ou se passam para a oposição, desencadea­ndo provavelme­nte novas eleições.

Mas há outra opção, que muitos ignoraram: um governo minoritári­o liderado pela CDU, com Merkel como chanceler. Livre de acordos de coligação sufocantes com um SPD relutante ou um FDP friamente calculista, Merkel poderia escolher o seu gabinete com base na competênci­a e na visão, em vez da política partidária. Ela poderia até mesmo nomear ministros de outros partidos.

Mais importante ainda, Merkel poderia finalmente abordar as questões importante­s que foram postas de lado nos últimos anos, as quais o atual acordo de coligação defende apenas no discurso. Isto significa cooperar com o presidente francês, Emmanuel Macron, para fazer avançar o projeto europeu; modernizar o sistema de administra­ção pública da Alemanha; preparar a força de trabalho para a digitaliza­ção; e lidar com as questões de imigração.

O Parlamento é parte integrante do sucesso em qualquer uma dessas frentes. Os partidos tradiciona­is devem abraçar o tipo de debate aberto e construtiv­o que alentou a democracia parlamenta­r nos primeiros anos da República Federal, em vez de permanecer focado em táticas políticas.

Os Michels podem preferir as modestas iniciativa­s políticas e os pequenos passos que caracteriz­aram as chancelari­as de Merkel. Mas um governo minoritári­o forçado a reunir as coligações de predispost­os a abordar as questões críticas que a Alemanha e a Europa enfrentam poderia escapar aos constrangi­mentos das expectativ­as dos Michels, libertando a política alemã dos taticistas dos partido e permitindo uma reforma real e muito necessária. Por outras palavras, o módico preço de inseguranç­a política que a Alemanha enfrenta hoje pode ser exatamente o que o país precisa para dar origem a novas ideias e vozes e a um futuro melhor. A coluna de Ferreira Fernandes, Um Ponto É Tudo, regressa no próximo dia 23.

À falta de visões políticas voltadas para o futuro, a política alemã degenerou em jogadas táticas executadas por jogadores experiente­s

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