Percebe-se a perplexidade da SIC: se o formato existe há tanto tempo em países “civilizados” sem problemas de maior, como é que no nosso humilde e pequeno e pacóvio Portugal sucede isto?
tempo em países “civilizados” sem problemas de maior, como é que em Portugal, no nosso humilde e pequeno e pacóvio Portugal, sucede isto? Sobretudo tendo em conta a tendência de crescente compressão dos direitos de imagem e de privacidade que se verifica na mentalidade geral e até nas decisões dos tribunais: quase 20 anos após a estreia do Big Brother no país e dezenas de reality shows depois, esperar-se-ia talvez que já ninguém se lembrasse de se indignar com um programa que expõe crianças, perfeitamente identificadas, a chamar nomes aos pais, a agredi-los, a chorar, a tomar banho, a levar estalos. Que ninguém pensasse no efeito dessa exposição e na perversidade de colocar uma equipa de estranhos a filmar cenas íntimas com menores, a “conduzi-los” e a “estimulá-los” nessas cenas – porque toda a gente sabe que, mesmo que não se faça um script para os comportamentos das crianças, elas percebem o que é esperado delas. Pois bem: não estamos ainda todos completamente embrutecidos, as leis e a Constituição não são (ainda) letra morta e as instituições cuja função é defender os direitos das crianças não dormem. Num ano em que Portugal acaba de surgir, num ranking mundial sobre a qualidade da democracia, em nono lugar, a par da Dinamarca (nós, a completar 42 anos desde as primeiras eleições livres, em 1976, a ombrear com os países nórdicos, uau), a reação à estreia do Supernanny deve encher-nos de orgulho. Se formos o primeiro país em que o formato tão bem caracterizado por Ana Sousa Dias no sábado neste jornal é retirado da emissão, ou – é o mínimo – alterado para proteger a identidade das crianças, será uma enorme vitória não só para os direitos das crianças mas para os direitos humanos em geral. A decência, enfim.
Mas, seja o que for que suceda, deveremos questionar-nos sobre como foi possível existir um programa destes, que tantos gabinetes jurídicos de produtoras e canais tenham achado que não havia problema desde os que pais assinassem um contrato a ceder os direitos de imagem e de devassa da intimidade dos filhos – direitos que não têm o direito de alienar, como tantos juristas já frisaram, porque são da criança e só dela –, que dezenas de países tenham convivido com várias séries disto com grandes êxitos de audiência. Porque houve um processo até aqui chegarmos, um processo que nos foi insensibilizando, baralhando prioridades e critérios, que nos foi alheando de valores fundamentais, criando um vale-tudo que promove uma ideia equivocada de “liberdade de expressão” e de “direito do público a saber e ver” para fazer triunfar uma lógica de puro lucro.
São tempos terríveis os que vivemos, aqueles em que os media, desesperados por viabilidade financeira, vendem o que lhes resta de alma – se alguma lhes resta –, em que a justiça, ao invés de, como é seu dever, constituir garante dos direitos fundamentais da privacidade e do direito à imagem, é a primeira a desvalorizá-los e a favorecer a sua violação, e em que todos nós, armados de um telemóvel com câmara, achamos que podemos e devemos filmar e fotografar tudo e todos e divulgar onde, quando e como nos apetecer. Se o Supernanny servir para nos fazer pensar em tudo isso, terá tido pelo menos essa grande utilidade.