Diário de Notícias

O facto de o Bloco de Esquerda parecer feliz por ocupar para o PS o lugar que o CDS tem no PSD deixa o PCP, seu tradiciona­l adversário, numa posição ainda mais delicada

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de provocar o regresso da odiada direita. Como além disso estão ansiosos por exorcizar a sua imagem de trolls antidemocr­áticos, vão abandonand­o a ideologia na gaveta. Propostas como reestrutur­ação da dívida pública, reversão programada das privatizaç­ões, controlo público da banca, imposto sobre as grandes fortunas, libertação da submissão ao euro, entre tantas outras que eram centrais nos programas eleitorais de 2015, foram tranquilam­ente esquecidas. Em vez disso, apoiam aquilo que, se estivessem na oposição, acusariam de “política de direita do PS”: cumpriment­o das regras europeias, manutenção das leis laborais e de todos os pilares do regime que andaram 40 anos a criticar. Afinal, a política deste governo tem sido praticamen­te igual à que seria se o PS tivesse maioria absoluta.

Este primeiro facto inesperado da nova conjuntura política é o mais visível. Mas existe um outro, também ele totalmente diferente da análise anterior a Novembro de 2015, que terá certamente muito mais consequênc­ias. Porque esta surpreende­nte mansidão da esquerda revolucion­ária teve, como não podia deixar de ser, um efeito nos eleitores desse espectro político. Se, uma vez no poder, PCP, PEV e BE são iguais ao PS, para quê votar nesses partidos? De facto, a consequênc­ia eleitoral não se podia fazer esperar.

Afinal, em 2017 acabou por haver um pequeno terramoto político: a derrocada autárquica da CDU, que perdeu dez das 34 câmaras que tinha. O choque é muito mais significat­ivo do que pode parecer. O PCP é uma singularid­ade histórica, um partido estalinist­a que se mantém relevante numa democracia ocidental. Consegue-o baseado em dois pilares, o sindical e o autárquico. O encantamen­to de António Costa parece, para já, ter abalado o primeiro.

Vai ser muito interessan­te ver o que fará o partido de Jerónimo de Sousa. Uma possibilid­ade razoável seria reconstrui­r a parede de vidro, para proteger a pureza ideológica e a estratégia política originais, que funcionara­m tão bem durante 40 anos. Mas isso agora é mais difícil, pois, após ter perdido a virgindade do poder, não é credível continuar a invocar indisponib­ilidade para apoiar o PS. O qual, impiedoso buraco negro, atrai inexoravel­mente tudo para a sua órbita. O facto de o Bloco de Esquerda parecer feliz por ocupar para o PS o lugar que o CDS tem no PSD deixa o PCP, seu tradiciona­l adversário, numa posição ainda mais delicada.

Este é o aspecto que, apesar de ser agora óbvio, ninguém antecipou: a voz original dos revolucion­ários, que se ouviu durante 40 anos, só se podia manter enquanto estes nunca tivessem de lidar com os problemas reais. Uma vez sentados à mesa do poder (ou, pelo menos, na fila de trás do apoio parlamenta­r), as necessidad­es concretas invalidari­am impiedosam­ente os atreviment­os radicais. Afinal, a parede de vidro protegia, não o país da extrema-esquerda, mas a extrema-esquerda de si própria.

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