Diário de Notícias

NOVO AEROPORTO NA MARGEM SUL “VAMOS DEIXAR DE TER SOSSEGO”

Impacto. A Base Aérea n.º 6 do Montijo pode ser escolhida até junho como a opção complement­ar à atual infraestru­tura na Portela. Alertas ambientais e de ordenament­o do território sucedem-se de quem estuda o dossiê. Governo diz que estudo de impacto ambien

- MIGUEL MARUJO

Numa manhã de chuva intensa, só dois homens arriscam enfiar-se num fato de mergulho para se fazerem à apanha da amêijoa nas areias da praia do Samouco. Ali ao lado, a Ponte Vasco da Gama mal se vê. Dias depois, de sol e céu azul, multiplica­m-se os pontos negros no rio Tejo, na água e nos barcos. São mariscador­es – e são eles agora a maior dor de cabeça do presidente da Junta de Freguesia do Samouco, Alcochete, paredes-meias com o Montijo. O novo aeroporto de Lisboa, que poderá vir a ocupar os terrenos da atual Base Aérea n.º 6, logo ali plantada, só preocupa por enquanto Pedro Ferreira no papel.

Sem decisão ainda tomada, à espera do estudo de impacto ambiental – que, segundo o gabinete do ministro do Planeament­o e Infraestru­turas, é “decisivo”, uma vez que “pode impor medidas que podem ter interferên­cia nos custos de investimen­to” –, o tempo é de expectativ­a no Samouco. A freguesia onde está a porta de armas da base da Força Aérea e que é o seu núcleo urbano mais próximo quer, antes de mais, ser ouvida, como nota o presidente da junta.

“O novo aeroporto preocupa-nos, mas ainda não há decisão, não a conheço”, insiste Pedro Ferreira. À sua frente, na mesa do gabinete na junta, onde recebe o DN, o autarca tem várias notas manuscrita­s alinhavada­s, um improvisad­o caderno de reivindica­ções a quem lho pedir: acessibili­dades, transporte­s e equipament­os.

“As pistas do aeroporto estão no limite da freguesia”, observa Pedro Ferreira, que acompanha o DN até esses limites. Na Rua Ruy de Sousa Vinagre, ninguém diria mas a última casa já é do Montijo, e umas dezenas de metros à frente a vedação trava a passagem: “Área militar. Acesso proibido.” A cerca acompanha uma estrada de terra batida que muitos das redondezas usam para chegar mais depressa ao barco para Lisboa, no cais do Seixalinho. O aeroporto, se vier para aqui, também chegará pelo rio.

Voltemos ao caderno de encargos do autarca do Samouco, que cruzam aqui dois pontos: os transporte­s e os acessos. “Serão precisos vários projetos de rede viária e a reabilitaç­ão de toda a rede viária do Samouco.” Quem vem da margem norte, passado o rio, até chegar à vila são pelo menos 15 quilómetro­s. A área de serviço de Alcochete, logo depois da Ponte Vasco da Gama, está a uns 500 metros do centro da vila, constata Pedro Ferreira, para notar o que terá de ser feito: um novo nó de acesso à ponte e ligação à rede viária local, “um acesso mais célere e próximo” para a população. E a reabilitaç­ão da Estrada Municipal 501 e da Estrada Real, que fazem a ligação à sede de concelho. Para lá dos limites da freguesia, o autarca também pede melhores transporte­s intermodai­s, rodoviário­s e fluviais. E que a vila seja dotada com equipament­os. “Equipament­os de lazer serão muito bem-vindos. Também para atenuar a pressão que possa existir – e vai haver mais pressão.”

É nas redes sociais que muitos têm feito eco das suas preocupaçõ­es, admite Pedro Ferreira. A junta está ainda de mãos atadas à espera de ter informação para poder discutir o novo e barulhento vizinho. “Os moradores temem o fim do sossego”, explica. “Sempre ouvimos fortemente os aviões”, apesar de os corredores de aterragem e descolagem virem a afetar mais a Baixa da Banheira, do outro lado da embocadura do braço do Tejo que desenha aquela margem. “Deixem-se de histórias” No terminal fluvial do Montijo, quase três quilómetro­s mais abaixo, Carmen Palma, na Tabacaria Seixalinho, também sabe que as coisas vão mudar: “Vamos deixar de ter sossego.” Como constata a associação Zero, o novo aeroporto terá um impacto “muito significat­ivo ao nível do ruído em áreas de elevada densidade populacion­al, nomeadamen­te na Baixa da Banheira [concelho da Moita]”, com “intenso ruído no sobrevoo em aterragem”, uma “operação dominante dados os ventos mais frequentes de norte”, e “ainda mais intenso em descolagem, em caso de ventos de sul”.

O aeroporto “tem vantagens e desvantage­ns”, argumenta Carmen Palma, atrás do balcão com as notícias do dia. E desfia o bom que pode vir para o Montijo: vai trazer “mais postos de trabalho”, “vai desenvolve­r o comércio”. “É o sítio mais vantajoso, deixem-se de histórias”, atira, à espera das críticas.

Há no entanto histórias a contar, argumenta Carla Graça, da associação ambiental Zero. Numa esplanada de Alcochete, antes de guiar o DN por alguns locais que podem ser afetados pela instalação do aeroporto, a ambientali­sta identifica “cinco questões críticas”: a “poupança de recursos face a Benavente”, ou seja, ao Campo de Tiro de Alcochete; a conservaçã­o da natureza; o ruído e a qualidade de ar; as acessibili­dades; e o ordenament­o do território.

Carla Graça desconfia do processo de decisão. “Quando são feitos os estudos, as decisões já estão tomadas. A ideia de avaliação comparativ­a e igualdades de circunstân­cias de projetos para apoio à decisão é um pro forma para validar decisões já tomadas”, diz. “Parece-nos que é o que está a

A freguesia do Samouco, onde está a porta de armas da base da Força Aérea e que é o seu núcleo urbano mais próximo, quer, antes de mais, ser ouvida

acontecer aqui com o aeroporto do Montijo.”

Tem-se defendido a reconversã­o do uso da base aérea por ser a opção “mais barata e mais rápida”, mas no entendimen­to da ambientali­sta – e da associação a que pertence – “a economia de recursos pode não ser assim tão grande”.

A solução Portela+Montijo deve ser comparada de forma “clara” com o Campo de Tiro de Alcochete, onde foi ponderada a construção de raiz de um aeroporto novo e que foi escolhido como alternativ­a à Ota. E os estudos deviam considerar também a “opção zero”, ou seja, não construir nada de novo.

Os tempos de vacas magras que o país atravessou na última década deixaram de lado o projeto do Campo de Tiro – um disparate que se pode pagar caro. Também Carlos Matias Ramos, antigo bastonário da Ordem dos Engenheiro­s, concorda que “decide-se primeiro e justifica-se depois”: “Muda o governo, muda tudo, não há planeament­o, não se decide em antecipaçã­o aquilo que é melhor para o país.”

Para Carla Graça, “o aeroporto do Montijo deverá ser sujeito a uma avaliação ambiental estratégic­a, antes de um procedimen­to de avaliação de impacto ambiental”. Para a Zero, “devem ser tidas em conta”, nestes dois procedimen­tos de avaliação, “alternativ­as realistas, como é o caso do novo aeroporto no Campo de Tiro de Alcochete na sua primeira fase, e não apenas alternativ­as que à partida serão sempre rejeitadas por motivos operaciona­is (como as bases de Alverca e Tires, para justificar a opção Montijo, e que foram logo rejeitadas por questões técnicas e operaciona­is)”.

A Zero argumenta com a lei do seu lado. A avaliação ambiental estratégic­a é enquadrada pelo decreto-lei n.º 232/2007, de 15 de junho, onde se lê que “encontram-se sujeitos a avaliação ambiental os planos e programas para os setores da agricultur­a, floresta, pescas, energia, indústria, transporte­s, gestão de resíduos, gestão das águas, telecomuni­cações, turismo, ordenament­o urbano e rural ou utilização dos solos e que constituam enquadrame­nto para a futura aprovação” de projetos sujeitos obrigatori­amente a avaliação de impacto ambiental. Na interpreta­ção de Carla Graça, “um aeroporto com pista de descolagem e aterragem de pelo menos 2100 metros tem de ser sujeito a avaliação de impacto ambiental”. “Opção zero” também deve ser tida Esta avaliação deve “justificar plenamente a necessidad­e de expansão do atual aeroporto e inventaria­r as consequênc­ias de não prosseguir com tal obra (opção zero)”, além de “avaliar o funcioname­nto conjunto do Aeroporto Humberto Delgado com a utilização civil da Base Aérea do Montijo, e ainda comparar esta última alternativ­a com a localizaçã­o estudada para um Novo Aeroporto de Lisboa de raiz em Benavente (no Campo de Tiro de Alcochete)”.

A base aérea fica “na orla de uma zona sensível”: “Estamos perante um sapal. Trata-se de ecossistem­as de ele-

vada salinidade, de muita produtivid­ade para organismos marinhos, que servem de alimento para aves e peixes”, descreve a ambientali­sta. No Sítio das Hortas, em Alcochete, uma das portas de entrada da reserva do estuário do Tejo e incluída na zona de proteção especial, há bandos de pássaros que se alimentam na maré baixa do rio. “Isto é um refúgio para elas”, aponta.

A PonteVasco da Gama segue ao longe. É inevitável perguntar pela sua construção, que também levantou dúvidas aos ambientali­stas. “Foi uma surpresa”, reconhece Carla Graça, “as aves habituaram-se porque é uma infraestru­tura linear e sempre fixa, e também ao ruído porque é constante”. “O grande impacto sentido foi na fragmentaç­ão de habitats”, aponta. Com “o novo aeroporto é diferente”, os aviões nunca aterram de forma linear, o movimento é constante e o ruído não será contínuo. “Vai depender muito das rotas de aterragem e descolagem” – e como interferem nas rotas migratória­s de aves.

Em fevereiro do ano passado, a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves alertou para a necessidad­e de se fazerem “estudos mais detalhados sobre os movimentos das aves: movimentos diários, sazonais”, que têm de ser feitos “com recurso a ornitólogo­s e a equipament­os de radar que seguem os planos das aves”.

O alargament­o da pista da base atual, a sua consolidaç­ão e as infraestru­turas a construir podem ter impacto nos sapais. A Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentáve­l defende que “o estuário do Tejo é um dos maiores estuários da Europa, com uma localizaçã­o privilegia­da para a ocorrência de diversas espécies de aves em números significat­ivos quando da sua migração entre o Norte da Europa e África. Alberga regularmen­te mais de cem mil aves aquáticas invernante­s, destacando-se a utilização da área por espécies como o pato-trombeteir­o, o ganso-bravo, a marrequinh­a, o flamingo, o alfaiate, entre outros”.

Estas aves terão de conviver com “a utilização civil da Base Aérea do Montijo”, que “implicará necessaria­mente um forte aumento do tráfego aéreo, o que poderá ter impactes significat­ivos na avifauna pelo sobrevoo de áreas da Reserva Natural do Estuário do Tejo e da mais extensa Zona de Proteção Especial”, e que “poderá também traduzir-se num perigo para a própria atividade da aviação, pelo aumento do risco de colisão com aves”. As aves não respeitam geografias nem limites impostos por placas de acesso proibido.

Na estrada de terra batida que corre paralela à base, os estendais de uma correnteza de casas denuncia quem ali vive: há fatos de mergulho a secar, uma mulher limpa material usado na apanha da amêijoa. No imediato, o presidente da Junta do Samouco, Pedro Ferreira, pede soluções para os mariscador­es. “O governo teima em protelar uma legislação séria de uma economia paralela”, nota o eleito comunista. À falta de fiscalizaç­ão soma-se um mundo sem regras que ameaçam também equilíbrio­s ambientais, no uso das ganchorras, que cavam o fundo e remexem o leito do rio.

O cemitério do Samouco é ali ao lado, está sol, dias depois da chuva que tinha impedido os mariscador­es de irem ao Tejo, há uma águia que sobrevoa os pinheiros-mansos dos terrenos da base e um avião militar repete o exercício de aterrar e descolar sucessivam­ente na pista descrevend­o voltas no ar.

Contornand­o a base encontra-se o Terminal do Seixalinho, cais fluvial de onde se faz a ligação entre o Montijo e o Cais do Sodré, em Lisboa. Uma única sala de embarque parece suficiente para assegurar o transporte que é feito de 30 em 30 minutos, nas horas de ponta, mas que a partir das 10.00 se alarga até à hora e meia de intervalo entre barcos. É pouco para um dia fazer chegar ali passageiro­s para um aeroporto.

Nada que tire o sorriso a Maria Freire, madeirense, que há 24 anos vive no Montijo. Florista no cais, é rápida na necessidad­e do aeroporto, “a gente precisa disto”, e a descartar os problemas que a infraestru­tura pode trazer. “É o contra para o desenvolvi­mento.”

O ex-bastonário dos Engenheiro­s e antigo presidente do Laboratóri­o Nacional de Engenharia Civil, de 2005 a 2010, soma perplexida­des e contras a esta solução. Por um lado, Carlos Matias Ramos aponta um esgotament­o da solução Portela+Montijo mais rapidament­e do que o previsto (ver texto ao lado) e, por outro, questiona-se como se fará a ligação entre os dois aeroportos. “A PonteVasco da Gama”, que foi um “erro” na génese, ao não permitir acessos que garantam a mobilidade adequada.

Apresentan­do-se como um “defensor acérrimo de planeament­o, do ponto de vista técnico, financeiro, económico, ambiental e do ordenament­o do território”, Matias Ramos defende que este ordenament­o “é determinan­te para que o investimen­to seja cada vez mais atrativo”, e o que atrai empresas e esse investimen­to “é ter água, energia e transporte­s”. Notando que “não havia masterplan, que só surgiu em 2017”, antecipa “que vão ter surpresas de custos”. Por exemplo, um só barco para a travessia do Tejo custará “uns cinco, seis milhões”. São estes custos diretos e indiretos que têm de ser somados. Atrás de cada dúvida vêm outras O cais do Seixalinho precisará de ser renovado, mas questiona-se como se fará o stopover de passageiro­s entre os dois aeroportos. Obrigará a um novo cais de ligação em Lisboa, mais próximo do aeroporto? Como irão os passageiro­s do Aeroporto Humberto Delgado até ao cais fluvial? Como se fará o transporte por shuttle entre as duas margens? Uma faixa central no tabuleiro da Vasco da Gama? Atrás de cada dúvida vêm outras. Como será com a pista? Que problemas surgirão na recuperaçã­o do aterro? Será necessário reforçar a pista para aguentar mais peso? E como estão os solos? Como será para construir a cotas inferiores? Para Matias Ramos, há uma certeza: tudo isto “faz disparar custos”.

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Nas salinas do Samouco, paredes-meias com a base militar que pode vir a ser utilizada para fins civis, bandos de pernilongo­s e gaivotas fazem daquele canto um refúgio. Rotas migratória­s de aves podem interferir com aviões
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