NOVO AEROPORTO NA MARGEM SUL “VAMOS DEIXAR DE TER SOSSEGO”
Impacto. A Base Aérea n.º 6 do Montijo pode ser escolhida até junho como a opção complementar à atual infraestrutura na Portela. Alertas ambientais e de ordenamento do território sucedem-se de quem estuda o dossiê. Governo diz que estudo de impacto ambien
Numa manhã de chuva intensa, só dois homens arriscam enfiar-se num fato de mergulho para se fazerem à apanha da amêijoa nas areias da praia do Samouco. Ali ao lado, a Ponte Vasco da Gama mal se vê. Dias depois, de sol e céu azul, multiplicam-se os pontos negros no rio Tejo, na água e nos barcos. São mariscadores – e são eles agora a maior dor de cabeça do presidente da Junta de Freguesia do Samouco, Alcochete, paredes-meias com o Montijo. O novo aeroporto de Lisboa, que poderá vir a ocupar os terrenos da atual Base Aérea n.º 6, logo ali plantada, só preocupa por enquanto Pedro Ferreira no papel.
Sem decisão ainda tomada, à espera do estudo de impacto ambiental – que, segundo o gabinete do ministro do Planeamento e Infraestruturas, é “decisivo”, uma vez que “pode impor medidas que podem ter interferência nos custos de investimento” –, o tempo é de expectativa no Samouco. A freguesia onde está a porta de armas da base da Força Aérea e que é o seu núcleo urbano mais próximo quer, antes de mais, ser ouvida, como nota o presidente da junta.
“O novo aeroporto preocupa-nos, mas ainda não há decisão, não a conheço”, insiste Pedro Ferreira. À sua frente, na mesa do gabinete na junta, onde recebe o DN, o autarca tem várias notas manuscritas alinhavadas, um improvisado caderno de reivindicações a quem lho pedir: acessibilidades, transportes e equipamentos.
“As pistas do aeroporto estão no limite da freguesia”, observa Pedro Ferreira, que acompanha o DN até esses limites. Na Rua Ruy de Sousa Vinagre, ninguém diria mas a última casa já é do Montijo, e umas dezenas de metros à frente a vedação trava a passagem: “Área militar. Acesso proibido.” A cerca acompanha uma estrada de terra batida que muitos das redondezas usam para chegar mais depressa ao barco para Lisboa, no cais do Seixalinho. O aeroporto, se vier para aqui, também chegará pelo rio.
Voltemos ao caderno de encargos do autarca do Samouco, que cruzam aqui dois pontos: os transportes e os acessos. “Serão precisos vários projetos de rede viária e a reabilitação de toda a rede viária do Samouco.” Quem vem da margem norte, passado o rio, até chegar à vila são pelo menos 15 quilómetros. A área de serviço de Alcochete, logo depois da Ponte Vasco da Gama, está a uns 500 metros do centro da vila, constata Pedro Ferreira, para notar o que terá de ser feito: um novo nó de acesso à ponte e ligação à rede viária local, “um acesso mais célere e próximo” para a população. E a reabilitação da Estrada Municipal 501 e da Estrada Real, que fazem a ligação à sede de concelho. Para lá dos limites da freguesia, o autarca também pede melhores transportes intermodais, rodoviários e fluviais. E que a vila seja dotada com equipamentos. “Equipamentos de lazer serão muito bem-vindos. Também para atenuar a pressão que possa existir – e vai haver mais pressão.”
É nas redes sociais que muitos têm feito eco das suas preocupações, admite Pedro Ferreira. A junta está ainda de mãos atadas à espera de ter informação para poder discutir o novo e barulhento vizinho. “Os moradores temem o fim do sossego”, explica. “Sempre ouvimos fortemente os aviões”, apesar de os corredores de aterragem e descolagem virem a afetar mais a Baixa da Banheira, do outro lado da embocadura do braço do Tejo que desenha aquela margem. “Deixem-se de histórias” No terminal fluvial do Montijo, quase três quilómetros mais abaixo, Carmen Palma, na Tabacaria Seixalinho, também sabe que as coisas vão mudar: “Vamos deixar de ter sossego.” Como constata a associação Zero, o novo aeroporto terá um impacto “muito significativo ao nível do ruído em áreas de elevada densidade populacional, nomeadamente na Baixa da Banheira [concelho da Moita]”, com “intenso ruído no sobrevoo em aterragem”, uma “operação dominante dados os ventos mais frequentes de norte”, e “ainda mais intenso em descolagem, em caso de ventos de sul”.
O aeroporto “tem vantagens e desvantagens”, argumenta Carmen Palma, atrás do balcão com as notícias do dia. E desfia o bom que pode vir para o Montijo: vai trazer “mais postos de trabalho”, “vai desenvolver o comércio”. “É o sítio mais vantajoso, deixem-se de histórias”, atira, à espera das críticas.
Há no entanto histórias a contar, argumenta Carla Graça, da associação ambiental Zero. Numa esplanada de Alcochete, antes de guiar o DN por alguns locais que podem ser afetados pela instalação do aeroporto, a ambientalista identifica “cinco questões críticas”: a “poupança de recursos face a Benavente”, ou seja, ao Campo de Tiro de Alcochete; a conservação da natureza; o ruído e a qualidade de ar; as acessibilidades; e o ordenamento do território.
Carla Graça desconfia do processo de decisão. “Quando são feitos os estudos, as decisões já estão tomadas. A ideia de avaliação comparativa e igualdades de circunstâncias de projetos para apoio à decisão é um pro forma para validar decisões já tomadas”, diz. “Parece-nos que é o que está a
A freguesia do Samouco, onde está a porta de armas da base da Força Aérea e que é o seu núcleo urbano mais próximo, quer, antes de mais, ser ouvida
acontecer aqui com o aeroporto do Montijo.”
Tem-se defendido a reconversão do uso da base aérea por ser a opção “mais barata e mais rápida”, mas no entendimento da ambientalista – e da associação a que pertence – “a economia de recursos pode não ser assim tão grande”.
A solução Portela+Montijo deve ser comparada de forma “clara” com o Campo de Tiro de Alcochete, onde foi ponderada a construção de raiz de um aeroporto novo e que foi escolhido como alternativa à Ota. E os estudos deviam considerar também a “opção zero”, ou seja, não construir nada de novo.
Os tempos de vacas magras que o país atravessou na última década deixaram de lado o projeto do Campo de Tiro – um disparate que se pode pagar caro. Também Carlos Matias Ramos, antigo bastonário da Ordem dos Engenheiros, concorda que “decide-se primeiro e justifica-se depois”: “Muda o governo, muda tudo, não há planeamento, não se decide em antecipação aquilo que é melhor para o país.”
Para Carla Graça, “o aeroporto do Montijo deverá ser sujeito a uma avaliação ambiental estratégica, antes de um procedimento de avaliação de impacto ambiental”. Para a Zero, “devem ser tidas em conta”, nestes dois procedimentos de avaliação, “alternativas realistas, como é o caso do novo aeroporto no Campo de Tiro de Alcochete na sua primeira fase, e não apenas alternativas que à partida serão sempre rejeitadas por motivos operacionais (como as bases de Alverca e Tires, para justificar a opção Montijo, e que foram logo rejeitadas por questões técnicas e operacionais)”.
A Zero argumenta com a lei do seu lado. A avaliação ambiental estratégica é enquadrada pelo decreto-lei n.º 232/2007, de 15 de junho, onde se lê que “encontram-se sujeitos a avaliação ambiental os planos e programas para os setores da agricultura, floresta, pescas, energia, indústria, transportes, gestão de resíduos, gestão das águas, telecomunicações, turismo, ordenamento urbano e rural ou utilização dos solos e que constituam enquadramento para a futura aprovação” de projetos sujeitos obrigatoriamente a avaliação de impacto ambiental. Na interpretação de Carla Graça, “um aeroporto com pista de descolagem e aterragem de pelo menos 2100 metros tem de ser sujeito a avaliação de impacto ambiental”. “Opção zero” também deve ser tida Esta avaliação deve “justificar plenamente a necessidade de expansão do atual aeroporto e inventariar as consequências de não prosseguir com tal obra (opção zero)”, além de “avaliar o funcionamento conjunto do Aeroporto Humberto Delgado com a utilização civil da Base Aérea do Montijo, e ainda comparar esta última alternativa com a localização estudada para um Novo Aeroporto de Lisboa de raiz em Benavente (no Campo de Tiro de Alcochete)”.
A base aérea fica “na orla de uma zona sensível”: “Estamos perante um sapal. Trata-se de ecossistemas de ele-
vada salinidade, de muita produtividade para organismos marinhos, que servem de alimento para aves e peixes”, descreve a ambientalista. No Sítio das Hortas, em Alcochete, uma das portas de entrada da reserva do estuário do Tejo e incluída na zona de proteção especial, há bandos de pássaros que se alimentam na maré baixa do rio. “Isto é um refúgio para elas”, aponta.
A PonteVasco da Gama segue ao longe. É inevitável perguntar pela sua construção, que também levantou dúvidas aos ambientalistas. “Foi uma surpresa”, reconhece Carla Graça, “as aves habituaram-se porque é uma infraestrutura linear e sempre fixa, e também ao ruído porque é constante”. “O grande impacto sentido foi na fragmentação de habitats”, aponta. Com “o novo aeroporto é diferente”, os aviões nunca aterram de forma linear, o movimento é constante e o ruído não será contínuo. “Vai depender muito das rotas de aterragem e descolagem” – e como interferem nas rotas migratórias de aves.
Em fevereiro do ano passado, a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves alertou para a necessidade de se fazerem “estudos mais detalhados sobre os movimentos das aves: movimentos diários, sazonais”, que têm de ser feitos “com recurso a ornitólogos e a equipamentos de radar que seguem os planos das aves”.
O alargamento da pista da base atual, a sua consolidação e as infraestruturas a construir podem ter impacto nos sapais. A Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável defende que “o estuário do Tejo é um dos maiores estuários da Europa, com uma localização privilegiada para a ocorrência de diversas espécies de aves em números significativos quando da sua migração entre o Norte da Europa e África. Alberga regularmente mais de cem mil aves aquáticas invernantes, destacando-se a utilização da área por espécies como o pato-trombeteiro, o ganso-bravo, a marrequinha, o flamingo, o alfaiate, entre outros”.
Estas aves terão de conviver com “a utilização civil da Base Aérea do Montijo”, que “implicará necessariamente um forte aumento do tráfego aéreo, o que poderá ter impactes significativos na avifauna pelo sobrevoo de áreas da Reserva Natural do Estuário do Tejo e da mais extensa Zona de Proteção Especial”, e que “poderá também traduzir-se num perigo para a própria atividade da aviação, pelo aumento do risco de colisão com aves”. As aves não respeitam geografias nem limites impostos por placas de acesso proibido.
Na estrada de terra batida que corre paralela à base, os estendais de uma correnteza de casas denuncia quem ali vive: há fatos de mergulho a secar, uma mulher limpa material usado na apanha da amêijoa. No imediato, o presidente da Junta do Samouco, Pedro Ferreira, pede soluções para os mariscadores. “O governo teima em protelar uma legislação séria de uma economia paralela”, nota o eleito comunista. À falta de fiscalização soma-se um mundo sem regras que ameaçam também equilíbrios ambientais, no uso das ganchorras, que cavam o fundo e remexem o leito do rio.
O cemitério do Samouco é ali ao lado, está sol, dias depois da chuva que tinha impedido os mariscadores de irem ao Tejo, há uma águia que sobrevoa os pinheiros-mansos dos terrenos da base e um avião militar repete o exercício de aterrar e descolar sucessivamente na pista descrevendo voltas no ar.
Contornando a base encontra-se o Terminal do Seixalinho, cais fluvial de onde se faz a ligação entre o Montijo e o Cais do Sodré, em Lisboa. Uma única sala de embarque parece suficiente para assegurar o transporte que é feito de 30 em 30 minutos, nas horas de ponta, mas que a partir das 10.00 se alarga até à hora e meia de intervalo entre barcos. É pouco para um dia fazer chegar ali passageiros para um aeroporto.
Nada que tire o sorriso a Maria Freire, madeirense, que há 24 anos vive no Montijo. Florista no cais, é rápida na necessidade do aeroporto, “a gente precisa disto”, e a descartar os problemas que a infraestrutura pode trazer. “É o contra para o desenvolvimento.”
O ex-bastonário dos Engenheiros e antigo presidente do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, de 2005 a 2010, soma perplexidades e contras a esta solução. Por um lado, Carlos Matias Ramos aponta um esgotamento da solução Portela+Montijo mais rapidamente do que o previsto (ver texto ao lado) e, por outro, questiona-se como se fará a ligação entre os dois aeroportos. “A PonteVasco da Gama”, que foi um “erro” na génese, ao não permitir acessos que garantam a mobilidade adequada.
Apresentando-se como um “defensor acérrimo de planeamento, do ponto de vista técnico, financeiro, económico, ambiental e do ordenamento do território”, Matias Ramos defende que este ordenamento “é determinante para que o investimento seja cada vez mais atrativo”, e o que atrai empresas e esse investimento “é ter água, energia e transportes”. Notando que “não havia masterplan, que só surgiu em 2017”, antecipa “que vão ter surpresas de custos”. Por exemplo, um só barco para a travessia do Tejo custará “uns cinco, seis milhões”. São estes custos diretos e indiretos que têm de ser somados. Atrás de cada dúvida vêm outras O cais do Seixalinho precisará de ser renovado, mas questiona-se como se fará o stopover de passageiros entre os dois aeroportos. Obrigará a um novo cais de ligação em Lisboa, mais próximo do aeroporto? Como irão os passageiros do Aeroporto Humberto Delgado até ao cais fluvial? Como se fará o transporte por shuttle entre as duas margens? Uma faixa central no tabuleiro da Vasco da Gama? Atrás de cada dúvida vêm outras. Como será com a pista? Que problemas surgirão na recuperação do aterro? Será necessário reforçar a pista para aguentar mais peso? E como estão os solos? Como será para construir a cotas inferiores? Para Matias Ramos, há uma certeza: tudo isto “faz disparar custos”.