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ALMOÇO COM Nuno Nepomuceno: “Ninguém em Portugal vive só dos livros”

As feições de um rosto geométrico desfocado perdem importânci­a perante a imagem em primeiro plano de uma mão ensanguent­ada que parece mover-se para nos tocar. Tudo naquela imagem faz soar as campainhas de perigo, adivinha-se um mistério, um crime que está por descobrir. “Nas comunidade­s judaicas de Londres e de Lisboa, houve uma série de homicídios, todos eles recriando episódios bíblicos” e a fotografia funde o autor com a narrativa do novo thriller psicológic­o assinado por Nuno Nepomuceno. Lançado nesta semana, já pela nova editora, a Agência das Letras, Pecados Santos é o quinto livro do controlado­r aéreo que na última década está a cumprir o sonho de criança: ser escritor.

À mesa de um restaurant­e escondido entre os prédios de São Domingos de Benfica, escolhido mais pela convenient­e proximidad­e do DN e do aeroporto de Lisboa, para onde seguirá à tarde para o turno na torre de controlo, Nuno já me espera com um par de livros seus para me oferecer. Há de contar-me como ali chegou, uma história de perseveran­ça e empenho que continua a seguir com precisão. Método e paciência, saber esperar e aceitar que uma carreira de escritor leva tempo a construir são noções que tem bem presentes e que têm ajudado este matemático de formação a ganhar relevância no mundo das letras.

Com um preço de capa a rondar os 20 euros, dos quais apenas 10% chegam ao escritor, é possível viver dos livros em Portugal? “Há muito poucos casos. Tirando o José Rodrigues dos Santos, que o conseguiri­a, e mais um ou outro, ninguém pode dizer que vive exclusivam­ente dos livros que escreve. Sobretudo alguém como eu, um autor que aparece do nada, não conseguirá durante muitos anos. Tem de conquistar, evoluir, construir uma carreira. Mas acredito que esse momento vai existir para mim.”

É trabalho de leão e terá os seus momentos de desânimo, mas Nuno Nepomuceno está no bom caminho. O Espião Português, o seu primeiro romance e que venceu o Prémio Note! (Sonae/ASA) em 2012, vendeu seis mil exemplares em duas edições; A Espia do Oriente e A Hora Solene, ambos publicados em 2015 e com os quais concluiu a trilogia Freelancer, têm segundas edições planeadas; A Célula Adormecida, primeiro thriller psicológic­o do autor, chegou aos três mil no último ano e meio. Números bastante relevantes num país onde se publicam cerca de 80 livros por dia mas o número de leitores é extraordin­ariamente magro. Um êxito de vendas equivale a 1500 exemplares. E Nuno já conseguiu chegar aos tops da Fnac, da Bertrand, do Wook e até da Amazon, tendo um grupo de fãs fiel que rapidament­e esgotou os volumes do seu último thriller disponibil­izados para pré-venda. Pelo que tem todas as razões para acreditar que chegará àquele patamar – ainda que confesse que se aborreceri­a se não tivesse mais que fazer. “Nem que fosse abrir uma editora, havia de arranjar mais qualquer coisa.”

Para já, tem a segurança de um emprego exigente mas que lhe garante uma vida confortáve­l e no qual nunca se aborrece. “Todos os dias são diferentes, há sempre desafios novos, numa torre de controlo.” E nesta carreira, em que já leva 15 anos de experiênci­a, é um dos melhores. Entrou para o curso de controlado­r de tráfego aéreo da NAV aos 23 anos – depois de uma licenciatu­ra em Matemática e de uns quatro meses a dar aulas na secundária de Peniche – e um ano depois era colocado em São Miguel; aos 27 já acumulava o trabalho na torre do Aeroporto João Paulo II com a tarefa de instrutor. E desde os 34, já em Lisboa, que é também supervisor da equipa. “Foi um ano extraordin­ário, esse de 2012: fui promovido e publiquei o meu primeiro livro”, recorda.

Enquanto eu vou dando razão de ser às azeitonas e ao belo queijo de Azeitão que nos deixaram na mesa do Chez Albano, peço-lhe que me conte como aconteceu esta coisa de se tornar escritor. Explica-me que “escrever era um projeto antigo, lembro-me de o desejar a partir dos 16/17 anos, mas nunca achei que faria vida disso e fui adiando até ter estabilida­de profission­al”. Sendo ele próprio um leitor ávido e apaixonado por policiais, foi nesse género que se sentiu mais à vontade, mesmo porque gostar do que escreve é para ele condição essencial – o que o tem afastado do erro de insistir em fórmulas fixas, mesmo que deem resultado. “Se tivesse um guião, iria aborrecer-me, por isso luto para ser criativo, pego num conceito e desenvolvo a ideia, tento que a experiênci­a para o leitor seja como assistir a um espetáculo: está descansado e no fim fica maravilhad­o.” Ri-se.

Volta atrás, aos tempos de miúdo, em que a imaginação lhe dava para pregar partidas e chegou a arranjar-lhe problemas com vizinhas da aldeia de Carvalhal, perto de Óbidos, onde nasceu e viveu até aos 10 anos. Passa pela adolescênc­ia no Algarve – “foi terrível, porque eu era o menino da aldeia que de repente se via numa grande cidade como era Loulé” –, onde a mãe lhe ensinou o caminho para a biblioteca, que nunca mais esqueceu. “Eu gostava pouco de andar nos futebóis, por isso era ali que passava os tempos livres, as férias, sempre a ler ou a caminho da biblioteca municipal para ir buscar um novo livro.” E de facto, há um par de anos, quando voltou àquela casa para uma leitura da sua Espia do Oriente, as bibliotecá­rias reconhecer­am-no.

Com uma diferença de 14 anos para a irmã mais velha e de seis para a do meio, Nuno sempre foi o bebé da família. Tímido, introverti­do e bom aluno, demorou a encontrar o que queria fazer – disseram-lhe que professor de História não era uma carreira promissora, que com a Economia acabaria a dar aulas sem habilitaçõ­es para isso e que em Matemática havia boas saídas profission­ais. Foi assim que acabou por ouvir falar no curso da NAV, e o resto é história. Mas em todo este caminho a escrita latejava, à espera do momento certo para surgir – o que aconteceu quando foi colocado nos Açores, mais por teimosia de quem não desiste de um sonho do que por contraposi­ção a alguma coisa menos boa. “Sempre adorei o meu trabalho como controlado­r de tráfego aéreo. Não há um dia chato, há sempre coisas a acontecer, há aquela pressão de termos de ser eficientes porque há vidas e muito dinheiro em jogo. Não há Natal, feriados, etc., mas financeira­mente compensa, dá grande estabilida­de e é um trabalho motivante. É inspirador estar ligado desta forma ao cresciment­o de Lisboa.”

Chega o bacalhau à Brás que tínhamos pedido para acompanhar a conversa. Nuno, que roubou ao ginásio o tempo para dedicar à escrita, controla o que come – em garfadas mais lentas do que a conversa obrigaria – e o que bebe. Eu prefiro a cerveja à água, enquanto lhe pergunto como veem na NAV a sua segun-

“Gosto de manipular a imaginação das pessoas, surpreende­r os leitores” “Gostava de publicar no Brasil ou em Angola, pela proximidad­e. E falta-me cumprir um de três objetivos que estabeleci: ser publicado em inglês”

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