“Vou desfilar no Ano Novo chinês. De vestido porcelana”
Lembro-me de ter sugerido há uns anos o título “A filha do senhor Lin do restaurante já é doutora” para uma reportagem de Céu Neves sobre os filhos de imigrantes chineses bem-sucedidos em Portugal. E agora, depois de ter relido esse belo artigo publicado no DN em agosto de 2015, chego ao Nova Ásia e logo identifico à porta a minha convidada, Lin Man, de 43 anos, que hoje coordena o China Desk da PLMJ, um importante escritório de advogados em Lisboa.
Tínhamos trocado e-mails e falado ao telefone, mas pela primeira vez estamos cara a cara, o que não impede os dois beijos no rosto, coisa “pouco chinesa, mas muito portuguesa”, admite a advogada. E apresenta-me uma das irmãs, Lin Hong, que também não se esquiva ao cumprimento mais caloroso. Três anos mais nova do que a irmã jurista, é ela que gere agora o restaurante na Avenida da Igreja, no lisboeta bairro de Alvalade. “Os meus pais reformaram-se e vivem entre Portugal e a China”, explica Lin, que se habituou há muito a ser tratada pelo nome de família, pois Man é que é o nome próprio, como Hong o é no caso da irmã (são quatro as manas Lin, incluindo ainda Ping, de 44 anos, que vive em Hong Kong, e Hao, também chamada de Suzana, de 30 anos, a única que nasceu em Portugal).
Tem muito boa fama este Nova Ásia, aberto em 1990 por Lin Dihua, pai da advogada, mas para mim é uma descoberta. Por sugestão da advogada, começamos por umas massas cozidas ao vapor, aquilo que muitos chamarão de dim sum e outros de dumplings. Pedimos shao mai de camarão, shao mai de alga nori recheado com camarão e porco preto e jiaozi com legumes e também porco. Para a mesa vêm também umas massas recheadas com favas, tudo bem saboroso; tudo, claro, também resultado de um compromisso aperfeiçoado ao longo de décadas entre a cozinha da província de Zhejiang e os gostos dos portugueses. “Até à abertura do Mandarim era o melhor restaurante chinês em Portugal”, reivindica Lin, com orgulho filial, referindo-se ao restaurante do Casino Estoril.
O senhor Lin veio para Portugal porque já cá vivia uma “meia-irmã”, alguém que tinha sido criado pela família. E essa “meia-irmã” era neta de um vendedor de gravatas que chegou em meados do século XX e que, andando por Lisboa e Porto, ficou a ser recordado com algum exagero como o primeiro chinês em Portugal. “EmWenzhou, a nossa cidade natal, o meu pai era encarregado numa oficina, mas ele ambicionava mais. E por isso se tornou emigrante, como muitos da nossa terra. E quando chegou, em 1981, começou a trabalhar em restaurantes chineses que já havia em Lisboa. Foi cozinheiro no Nuvem Mar, ali perto do Conde Redondo.”
Interrompo Lin para lhe contar que conheço bem o Nuvem Mar. Fui cliente fiel entre 1992, quando comecei a trabalhar no DN, e 2016, quando o jornal passou a sua sede da Avenida da Liberdade para as Torres de Lisboa. Ainda no outro dia comentava com uma jornalista quando é que lá voltávamos para matar saudades do shambau de porco, prato emblemático do Nuvem Mar. Eu e Lin rimo-nos com a coincidência. Ao fim de algum tempo, o pai deixou de trabalhar ali, mas era lá que estava ainda quando Lin, mais a mãe, chegou a Portugal em 1982. E, por isso, a primeira escola dela cá foi onde está instalada agora a Universidade Autónoma.
Continuamos a degustar as pequenas massas, mas pelo meio pedimos os pratos principais. Uma vez mais recorro a Lin, que sugere gambas com espargos e pato à Pequim. Quem nos atende, num português ainda tímido, é uma nepalesa que trabalha no Nova Ásia, sinal de que Portugal é um país de emigrantes mas também cada vez mais de imigrantes. E antes de me servir, usando pauzinhos, do meu segundo shao mai de alga nori pergunto como é que foi para uma menina de 8 anos chegar a Portugal? “Achei um país completamente diferente ao início, não falava sequer uma palavra de português. Eu e a minha irmã mais velha tínhamos de começar tudo de novo na escola a aprender uma língua estrangeira e, como só tínhamos feito a primeira classe e o nosso nível de chinês também não era muito bom, não podíamos consultar o dicionário com muita frequência para saber o significado das palavras, portanto tivemos muita dificuldade”, conta Lin.
Ao fim de um ano já conseguiam comunicar, ainda com algumas dificuldades. E se havia uns miúdos que insistiam em chamá-las “chinesinhas limpopó”, a integração nas sucessivas escolas foi correndo bem, até porque eram boas estudantes. E eram boas estudantes mesmo tendo de ajudar no primeiro restaurante que o pai conseguiu entretanto comprar para a família. “A partir do segundo ou terceiro ano os meus pais compraram um restaurante chinês que havia no Cais do Sodré e a partir daí, como o restaurante já era nosso, nós também ajudávamos no balcão, a tirar cafés. À medida que fomos crescendo fomos também servindo à mesa. Era a nossa rotina. Fazíamos os trabalhos de casa no restaurante. Lembro-me de que na hora de almoço havia muito movimento, então depois das aulas íamos logo para o restaurante, ajudávamos na hora de ponta e regressávamos à escola. Fazíamos trabalhos de casa e estudávamos no restaurante. A casa era só para dormir”, relembra Lin, agradecendo aos pais por sempre terem incentivado as filhas a estudar. “Os nossos pais diziam-nos para dar prioridade aos estudos, que era bom para o nosso futuro. Sempre insistiram. Lembro-me de que havia amigos chineses na mesma situação que tinham desistido porque era muito cansativo, ou se calhar alguns pais não davam tanta importância aos estudos.”
Chega o marido de Lin. Apresenta-se como Zhu e veio só para me cumprimentar, gentileza chinesa. Sei que chegou de manhãzinha da China e que só dormiu um pouco. É da mesma cidade da família de Lin e conheceram-se lá, numa das visitas da advogada à terra dos antepassados. “Ele sempre soube que se casasse comigo era para vir viver para Portugal. Expliquei-lhe que era um país de gente simpática. E casámo-nos e veio”, diz ela, entre risos.
Zhu é empresário e nestes anos que viveu em Lisboa aprendeu português “sem ir à escola, só com a minha ajuda e muito com a sua força de vontade”, explica Lin. Têm duas filhas portuguesas, Natacha, de 15, e Jéssica, de 10, e Lin admite que casar-se com um chinês, sobretudo também da mesma região, foi sempre algo presente na mente dos pais. “Há mais facilidade do ponto de vista cultural. O que se quer para os filhos. E o entendimento entre as famílias também é importante. Por exemplo, a minha sogra veio agora para estar com as netas e vai ficar uns tempos”, explica. Mas como nada é igual quando se vive entre duas culturas, Lin, que tem apenas nacionalidade portuguesa (a China não aceita dupla nacionalidade), fez que as filhas, além do apelido Zhu, também tenham o seu, o que não acontece nos nomes chineses. Ou seja, a filha mais velha é Natacha Lin Zhu.
Chegam os pratos principais. De novo, deliciosos. A minha convidada faz questão de agir como anfitriã, servindo-me até e, no caso do pato à Pequim, mostrando-me como se mistura tudo para potenciar o sabor. Pergunta-me se conheço a China bem. A resposta é não, pois nunca estive em Pequim ou Xangai, mesmo que tenha já visitado aquilo que se pode chamar a periferia, como Hong Kong, Macau e Taiwan, esta última com fama de ser um paraíso gastronómico por virtude de ter acolhido gente ida de toda a China. Talvez este verão vá finalmente a Pequim de férias com a família, acrescento eu, com grande probabilidade de acontecer.
Licenciada em Direito pela Universidade Católica de Lisboa, Lin estagiou na PLMJ e desde 2002 está inscrita na Ordem dos Advogados. Chegou depois a ter o seu próprio escritório, “mas um dos sócios fundadores da PLMJ, o Sr.
“Este ano convidaram-me para desfilar com um vestido tradicional chinês, muito bonito. Não é fácil, porque ainda temos de ensaiar muito, preparar-nos para a festa e espero que tudo corra bem”, explica Lin. A advogada acrescenta que usará um vestido azul e branco, um tradicional qibao, a lembrar cerâmica
Dr. Luís Sáragga Leal, convidou-me a voltar” à casa onde estagiara para coordenar o China Desk. “No meu caso, como falo as duas línguas, trato muito com clientes chineses. Hoje há muitos chineses, quer a título particular quer empresarial, que querem investir no estrangeiro. Falo quer de empresas estatais quer de privadas e também dos investidores golden visa. Preferem falar com um advogado que conheça a sua língua, a cultura e maneira de pensar”, diz. Segunda maior economia mundial, a China é cada vez mais um investidor global e Portugal, com o qual as relações têm mais de cinco séculos, tem estado na mira, com entrada no capital de empresas como a EDP, o BCP e a Fidelidade.
Está na hora da sobremesa e decidimos partilhar ananás pasi, um clássico dos restaurantes chineses por cá. Lin contou-me como foi em criança desenvolvendo o mandarim em casa, a ver séries e filmes chineses que chegavam em cassetes, e como hoje, para as filhas, manter contacto com a cultura do país de origem dos pais é bem mais fácil, com os canais de televisão e a internet. “Elas são portuguesas, nasceram cá, e entre as duas falam português. Comigo e com o meu marido falam mandarim, ou dialeto da nossa região, ou português, às vezes até inglês. Mas estou satisfeita porque elas falam muito bem chinês e também escrevem, porque têm aulas ao sábado na escola chinesa. Em casa, o meu marido queria ao princípio que elas falassem sempre chinês mas, como hoje em dia já falam muito bem, também deixamos falar português entre elas.”
Natacha e Jéssica já foram à China. Conta a mãe que “nos últimos anos têm passado férias de verão na China a participar num campo de férias com a Escola Chinesa, organizado pelo governo chinês, e têm gostado. Eu quero que elas conheçam mais a história e cultura chinesas e só indo lá é que sentem esse apelo”.
De signo chinês tigre (e capricórnio, segundo o zodíaco), Lin confessa estar entusiasmada com a aproximação do Ano Novo lunar, dia 16, pois “para os chineses é a data mais importante, como se fosse o Natal em Portugal, e então na nossa família comemoramos não só o Natal mas também o Ano Novo chinês. Este ano, do cão, vai haver uma festa ainda maior organizada pela embaixada com o apoio das associações chinesas em Portugal e da Câmara de Lisboa. Vão ser dois dias na Praça do Martim Moniz. E vou participar”.
Fico surpreendido. E pergunto sobre o que quer dizer com participar. “Este ano convidaram-me para desfilar com um vestido tradicional chinês, muito bonito. Não é fácil, porque ainda temos de ensaiar muito, preparar-nos para a festa e espero que tudo corra bem”, explica. A advogada acrescenta que usará vestido azul e branco, um tradicional qipao, a lembrar cerâmica. E, como fica na dúvida sobre como se escreve, consulta a internet e aproveita para me mostrar a WeChat, uma app de mensagens que conquistou a China.
Não só a história da civilização chinesa como o sucesso das décadas recentes (quando a economia crescia a 10%, o PIB duplicava a cada sete anos) dizem muito a Lin, que sabe como o gigante asiático está hoje muito mais desenvolvido do que na época em que o pai decidiu vir para Portugal ganhar a vida. “Hoje em dia a classe média da China vive muito bem”, admite, dizendo que quando visita o país sente essa crescente prosperidade. Comento que quando os navegadores portugueses chegaram às costas chinesas, no século XVI, reinava a dinastia Ming, tão poderosa que a criação de Macau teve de ser por vontade comum, não fruto de conquista. E pergunto a Lin se o chinês comum sabe desse período áureo de Portugal e de termos sido os primeiros europeus a chegar ao Oriente por mar. “Há quem saiba e outros não. Desde pequena que acompanho o meu pai, que costuma receber em Portugal não só amigos mas também delegações da China. Fazemos sempre o trajeto do cabo da Roca, de Belém, etc., e nessa altura explicamos que Portugal foi um país muito poderoso nos séculos XV e XVI, que foram os primeiros a navegar pelo mundo, a chegar à China e ao Japão.”
Foram três horas de conversa. Mas antes de terminar, e porque se trata de um Almoço Com..., peço ainda a Lin que me diga que comida portuguesa mais lhe agrada e ela começa logo a enumerar: “Choco frito, polvo à lagareiro, bacalhau assado, bacalhau à Gomes Sá, peixe grelhado. Sabe, os chineses quando vêm cá gostam muito da comida, sobretudo do peixe.”
Advogada de várias associações da comunidade chinesa em Portugal, Lin é membro da Associação de Advogados Chineses na Europa e da Federação de Chineses do Exterior. Figura conhecida dos diplomatas chineses em Lisboa, alguns fluentes em português, longe vão os tempos em que certas festas da embaixada se faziam no Pato Lacado de Pequim, restaurante que ficava ao lado do Nova Ásia e que também era de Lin Dihua. “Lembro-me de que a da transferência de Macau para a China em 1999 foi no restaurante ao lado, que também era nosso. Foi considerado o melhor restaurante chinês de Lisboa porque era chique...”, conta entre risos.