Recordações de uma empresa feliz
› Em 2009, quando receberam os diplomas do processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências em que várias operárias (e operários) viram reconhecida a equivalência ao 9º ano. Houve ainda algumas que conseguiram fazer o 12º. É um dos feitos de que Manuela Lourenço mais se orgulha, o de ter conseguido que as colegas tivessem, em 2009, aulas na Triumph, em horário pós-laboral. “Foi uma altura tão boa, andávamos todas muito empenhadas, tudo com sede de aprender”, recorda Lucinda Carvalho, que até aí tinha o sexto ano Triumph Portugal, cuja apresentação termina de modo anacronicamente triunfante: “Produzindo tanto para o mercado interno, onde os seus produtos são distribuídos em múltiplos pontos de venda do Continente e Ilhas, como também para a exportação destinada ao Mercado Europeu, bem como a diversos países extraeuropeus, a empresa tem vindo a alargar continuamente o âmbito das suas atividades.”
Não, não tem vindo. E, apesar das promessas de investimento milionário que mereceram a visita do ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, há um ano, a compradora Gramax levaria 10 meses a deixar de pagar aos trabalhadores e menos de um ano a entrar em insolvência. “Fomos vendo as encomendas desaparecer. Durante um ano ainda tivemos as coisas da Triumph para fazer, mas depois isso acabou e fomos recebendo cada vez menos pedidos e cada vez menos volumosos”, narra Lucinda. Chegaram a ter, por exemplo, encomendas de apenas 15 peças da La Perla (uma prestigiada e cara marca italiana de lingerie). E, acusa,“vinham as coisas para fazer sem a descrição – antes tínhamos sempre uma descrição para cada peça – sem preceitos, tínhamos de estar a experimentar, a fazer e desfazer. Ninguém nos dava as orientações como deve ser. Depois queixavam-se de que o trabalho não estava bem. Como poderia estar?” “Ainda não percebi o que aconteceu” No fim, ficavam dias inteiros sem nada que fazer. Faziam malha – como fizeram depois no piquete – liam livros, jogavam jogos no telefone. Houve quem ficasse doente e quem, desenganado, se fosse embora, para a reforma, para outro emprego, para nada. Em dezembro, já com ordenados em atraso, surgiu uma ordem de serviço a dizer que quem quisesse podia ir para casa. Terão ido cento e tal. E a 5 de janeiro apareceu a notícia de que uma transportadora vinha buscar uma encomenda não paga. Foi o início da luta. Houve até uma operária que se atravessou, no parque de estacionamento, à frente do carro de um dos gestores, dizendo que não podiam elas estar sem salários e ele continuar a usar o carro da empresa e a meter combustível com o cartão da empresa. “E ele e a outra gestora saíram dali de táxi”, diz Lucinda com uma gargalhada.
Mas a epopeia daqueles 20 dias terminou; agora, mesmo sem entrevistas como esta e idas à TV, prolongam o calor de uma glória breve, é preciso olhar para a frente. Sílvia Pestana, 39 anos, suspira. Mesmo sendo das operárias mais recentes – estava na empresa ainda nem há sete anos – fez piquete. “Não fazia noites por ter uma filha pequena, com 9 anos. Mas estive lá. Nunca me tinha acontecido algo assim, parece um filme de terror. Caiu a tristeza quando levantámos a barraca, mas acho que ainda não percebi bem o que me está a acontecer.” Era uma empresa muito boa. “Entrei no dia em que fez 50 anos cá. Preferiam operárias com filhos, diziam que éramos mais responsáveis. E quando contava às pessoas que recebia abono pela miúda diziam-me ‘isso não deve ser cá em Portugal’.” Já não.