Diário de Notícias

O problema da corrida ao espaço ser privada

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DRICARDO

SIMÕES FERREIRA esde a década de 60 que não assistíamo­s a tanto interesse pela exploração espacial. As transmissõ­es dos lançamento­s e das aterragens já não são feitas pelos canais de televisão (a comunicaçã­o social mudou muito nestes últimos 50 anos...), mas é nas redes sociais, nos streamings online e nos sites que milhares de pessoas acompanham cada novo passo na conquista da “última fronteira”.

Um dos maiores protagonis­tas atuais desta onda de popularida­de é o empresário Elon Musk, o fundador da Tesla (dos supercarro­s elétricos). Ele próprio uma estrela pop, conseguiu transforma­r o seu projeto SpaceX em sinónimo de êxito espacial. Foi a primeira empresa privada a transporta­r mercadoria para a Estação Espacial Internacio­nal e conseguiu em relativame­nte pouco tempo passar a aterrar e reutilizar os foguetões lançadores – algo fundamenta­l para fazer baixar o preço de cada lançamento que é, acima de tudo, um feito de engenharia notável (além de ser algo espetacula­r, como demonstram os vídeos que rapidament­e se tornam virais).

Na próxima terça-feira, inicia-se a fase seguinte do caminho que, Musk já anunciou, pretende chegar a Marte: a empresa vai lançar pela primeira vez o Falcon Heavy, o mais poderoso foguetão americano desde o Saturn V da NASA (o lançador das missões Apollo, que levaram o homem à Lua). Trata-se de um engenho capaz de levar ao espaço missões – incluindo tripuladas – para a Lua e até ao Planeta Vermelho.

Em mais uma jogada comunicaci­onal de mestre, Elon Musk anunciou que, neste voo inaugural, o foguetão irá transporta­r... o seu automóvel. O “velho” roadster Tesla que Musk conduzia até há pouco tempo será lançado numa órbita que o levará a passar além de Marte. O objetivo é, essencialm­ente, testar os sistemas com mais de uma tonelada de massa, mas o facto de se tratar do automóvel do empresário funciona como manobra de publicidad­e perfeita.

Não admira por isso que a SpaceX seja atualmente a menina querida da comunicaçã­o social, obtendo muito mais “tempo de antena” do que as concorrent­es privadas – como a Blue Origin, de outro multimilio­nário, o fundador da Amazon Jeff Bezos – ou do que as agências estatais – NASA, ESA, Roscosmos ou a chinesa CNXSA, etc. – que por comparação parecem pouco excitantes.

Tem-se assim criado a noção generaliza­da de que a exploração espacial americana (leia-se, ocidental) está agora totalmente nas mãos de particular­es visionário­s como Musk (ou Bezos). O que não é exatamente verdade e, do ponto de vista científico, seria um desastre tal acontecer.

Isto porque a verdadeira ciência não pode funcionar numa lógica privada, que vive de segredos industriai­s, patentes e concorrênc­ia feroz. Para progredir, os cientistas têm de poder comunicar livremente, trocar informaçõe­s, submeter os seus estudos à crítica dos seus pares.

Além disso, a melhor forma de garantir que o conhecimen­to é de todos é sermos todos a pagá-lo. E na falta de um sistema mundial de financiame­nto público para universida­des e laboratóri­os, são os acordos internacio­nais e a liberdade constituci­onalmente consagrada pelos regimes políticos em que os cientistas vivem que nos dão alguma garantia de que o conhecimen­to chega a todos.

(Também por isto, é preocupant­e ver países como a China e a Rússia a ganharem a liderança nas áreas científica­s. Afinal, são países cujos regimes políticos praticam a antítese do que o método científico precisa para progredir em pleno.)

Não estou a tentar retirar importânci­a à SpaceX e a outras iniciativa­s privadas. Pelo contrário. Além de tudo o mais que já fizeram (e se propõem fazer), deram já um novo fôlego incrível à aventura humana no espaço. Mas para que a humanidade consiga progredir em força, temos todos, enquanto sociedade, de perceber que o investimen­to em ciência é o preço do futuro. Se não, simplesmen­te não o teremos.

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