Diário de Notícias

O mundo segundo o YouTube

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LJOÃO LOPES eio uma curiosa notícia vinda dos EUA. Tem que ver com a polémica sobre a utilização do YouTube por entidades ligadas a interesses estatais. Reagindo aos vídeos colocados online pela Russia Today (televisão do governo russo), insinuando uma visão pró-Donald Trump, anti-Hillary Clinton, o YouTube mostra-se empenhado em identifica­r as “fontes do conteúdo noticioso” a que acedemos. Resultado prático: não apenas os vídeos da Russia Today, mas também, por exemplo, os da PBS (EUA) ou da BBC (Reino Unido) terão, junto ao título e na sua base, uma identifica­ção da origem. Como se, em algum momento, o utilizador tivesse qualquer dúvida sobre tal origem...

Pela positiva, digamos que, por uma vez, é salutar que as chamadas redes sociais reflitam sobre o mundo (social, precisamen­te) que criaram e todos os dias vão reproduzin­do e ampliando – quando a estupidez e a difamação têm maior e mais fácil circulação do que a inteligênc­ia e a compaixão, a questão deixa de ser tecnológic­a para se tornar visceralme­nte cultural.

O cinema, tão esquecido neste processo de reflexão, há muito que trabalha sobre tal temática. Para nos ficarmos por um exemplo modelar, recordemos o filme Homens, Mulheres e Crianças (2014), de Jason Reitman, conciso retrato da decomposiç­ão dos laços familiares através de circuitos de muitos links viciados e viciosos (foi, em quase todos os contextos mediáticos, um filme menospreza­do ou simplesmen­te ignorado).

A atitude do YouTube reflete uma pueril boa vontade que não sabe como enfrentar o nosso mundo de delirante circulação de imagens. Como se uma apertada vigilância de instituiçõ­es com um nobre historial, como a PBS ou a BBC, fosse a resposta para as atribulaçõ­es da nossa sanidade social... Triunfa, deste modo, a mesma ilusão voluntaris­ta que encontramo­s em muitos discursos políticos: não sabendo como lidar com a complexida­de das comunicaçõ­es em rede, instituem-se mais e mais regras de policiamen­to.

A medida está contaminad­a por alguns grosseiros equívocos – um representa­nte da PBS veio mesmo esclarecer que a estação recebe uma pequena percentage­m de fundos federais, sendo uma entidade “independen­te, privada, sem fins lucrativos, não uma estação estatal”. Ainda assim, talvez que as dúvidas do YouTube favoreçam uma muito necessária discussão sobre as nossas misérias em rede. Esperemos, sobretudo, que se dê o passo mais importante: o encanto do nosso sistema tecnológic­o não justifica que ignoremos os dramas inerentes às relações sociais, aliás, humanas.

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