Diário de Notícias

“O Estado não sabe administra­r o preço dos medicament­os”

Farmacêuti­cas “estão a testar limites de até onde estamos disponívei­s para gastar”. “IPO gastou meio milhão num medicament­o para um doente por um ano”

- PAULO BALDAIA (DN) e ARSÉNIO REIS (TSF) FOTOGRAFIA­S: RODRIGO CABRITA

ENTREVISTA DN/TSF FRANCISCO RAMOS PRESIDENTE DO IPO

“Para contratar um funcionári­o preciso da autorizaçã­o do Ministério das Finanças; mas aumento em 50% a despesa com medicament­os e o ministério paga”

O IPO é conhecido pela maioria dos portuguese­s como uma entidade eficaz e de recursos humanos altamente qualificad­os, mas havendo cada vez mais pessoas com cancro tem a necessária capacidade de resposta? Muito obrigado pelo convite para assinalar este dia de luta contra o cancro em que todos os momentos de mensagem e de ação são muito importante­s. O IPO é, de facto, uma instituiçã­o com um enorme prestígio – aliás considero-me muito privilegia­do por ter oportunida­de de presidir ao conselho de administra­ção do IPO e, portanto, beneficiar do prestígio que a instituiçã­o tem –, esse prestígio foi construído ao longo de décadas, o IPO é quase uma instituiçã­o centenária, tem 94 anos de existência. Foi construído por uma cultura muito própria, uma cultura de atenção ao doente que não se esgota no momento em que o tratamento está a ser feito. Há, de facto, uma cultura muito própria, muito arreigada, muito vincada na instituiçã­o, que passa de geração em geração dos profission­ais. Desde que o IPO existe que estamos lá para trabalhar em função dos doentes. Até pela natureza da doença das pessoas... A natureza vinca muito, o cancro ainda é uma palavra muito marcante, muito assustador­a, mas sobretudo a capacidade de resposta que foi possível montar é muitíssimo interessan­te. Tem vindo a manter-se essa caracterís­tica e a aumentar a quantidade de recursos que temos disponívei­s, quer em termos de pessoas quer de recursos tecnológic­os. Esta é uma batalha difícil, é uma batalha de muitos momentos de não vitória, chamemos-lhe assim, portanto muito desgastant­e, mas o saldo é positivo. Mas por mais recursos que vão tendo, muito provavelme­nte o número de doentes cresce a um ritmo superior. Para que a resposta fosse a 100% qual é a maior urgência: recursos humanos, equipament­os médicos, os edifícios? Recursos humanos, até porque essa é claramente a mais-valia. Ou seja, há um problema de edifícios? Sim, o IPO tem muitos anos, tem edifícios degradados, e temos feito um grande esforço de recuperaçã­o de instalaçõe­s; os equipament­os? É importante ter tecnologia mais moderna, há tecnologia hoje muitíssimo complexa na área da radioterap­ia, na área da medicina nuclear, na área da genética, portanto a modernizaç­ão tecnológic­a é relevante, mas o fundamenta­l são as pessoas. Ou seja, nada disso, sem o conhecimen­to dos nossos médicos, dos nossos enfermeiro­s, dos nossos técnicos, teria, no fundo, um papel útil. (...) Há cerca de um ano, o Francisco Ramos dizia que os laboratóri­os aumentavam os preços dos medicament­os oncológico­s, acrescenta­ndo que o preço desses medicament­os vendidos aos hospitais crescia cinco vezes mais do que para o mercado geral. O Estado não sabe negociar? O Estado não sabe sequer administra­r esses preços, porque aquilo a que nós pudemos assistir nos últimos anos foi que sempre que o Estado atuou, e atuou com a sua força de Estado, esses preços reduziram-se, baixaram, foram mais propícios ao interesse público. Portanto, nessa matéria, quase que vemos uma completa vitória dos fornecedor­es de medicament­os, que nos últimos anos, por uma razão que eu não consigo explicar, decidiram testar os limites das autoridade­s públicas em termos de disponibil­idade de dinheiro para a saúde. Os preços dispararam para muitas situações, para a oncologia sobretudo, mas não só, mas para a oncologia dispararam para situações inimagináv­eis. Isso tem também que ver com a pressão para a utilização de novos medicament­os, ou medicament­os inovadores, ou não é só isso? É isso, fundamenta­lmente. São medicament­os inovadores. O que se passa no mercado dos medicament­os é um certo desgaste de preço de medicament­os antigos, que hoje estão muito acessíveis, e preços astronómic­os de alguns medicament­os novos ou na generalida­de dos medicament­os novos. Posso dizer que o preço máximo atingido no IPO de Lisboa foi, no verão de 2016, meio milhão de euros por um medicament­o, para um doente, du-

rante um ano. Meio milhão de euros. Não é um tratamento, é um medicament­o, portanto uma dose unitária ao longo de um ano. É um recorde que se vai batendo, porque o anterior era de 400 mil euros. Exatamente. É um recorde que há de continuar a aumentar porque o movimento que existe é um movimento que as autoridade­s portuguesa­s – e não só, porque este problema é internacio­nal – não conseguem controlar. Julgo que a indústria farmacêuti­ca está a testar os limites de até onde é que estamos disponívei­s para gastar dinheiro em saúde. Na realidade, em Portugal temos estado disponívei­s. Depois, o que é que se passa na prática? Os hospitais têm dinheiro para pagar estes medicament­os a estes preços? Não. Ficam a dever. Aparecem as notícias da dívida dos hospitais. Há pressão para que essa dívida seja paga e no fim do ano há um mês, dezembro, em que lá vai uma tranche adicional de financiame­nto para os hospitais para pagar essas dívidas. De facto, até aqui, apesar destas reclamaçõe­s que todos fazemos, no fim do dia acabamos por pagar e, digamos, tudo está bem apesar destes preços perfeitame­nte extraordin­ários. Há três anos, o IPO de Lisboa gastava em medicament­os 30 milhões de euros, no ano passado gastou 50, portanto um aumento de mais de 50% em três anos, o que é um ritmo insuportáv­el. Não o convence a tese de que os laboratóri­os farmacêuti­cos cobram esses preços para medicament­os inovadores porque gastam centenas de milhões a descobri-los? Não, não. Não me convence rigorosame­nte nada e não me convence por dois motivos: É verdade que os laboratóri­os farmacêuti­cos gastam muito dinheiro a desenvolve­r e a investigar esses novos medicament­os, isso é verdade,

“O Estado não sabe sequer administra­r esses preços (...) quase vemos uma completa vitória dos fornecedor­es de medicament­os, que decidiram testar os limites das autoridade­s públicas em disponibil­idade de dinheiro para saúde”

“O recorde há de continuar a subir porque há um movimento que as autoridade­s portuguesa­s – e não só, porque este problema é internacio­nal – não conseguem controlar”

“Há três anos, o IPO de Lisboa gastava 30 milhões em medicament­os, no ano passado gastou 50, portanto um aumento de mais de 50% em três anos, o que é um ritmo insuportáv­el”

mas também é verdade que muitíssimo dessas verbas vem de fundos públicos; seja de subsídios diretos, seja de fundações públicas, seja de laboratóri­os públicos, seja das universida­des públicas. Ou seja, no muito dinheiro que custa investigar um novo medicament­o há muitas situações em que metade vem de fundos já públicos. Depois, basta ver as contas desses laboratóri­os, sobretudo internacio­nais, para ver que neste momento a indústria da saúde, dos medicament­os, é uma – a par da energia e da indústria das armas – das mais rentáveis. Num país como Portugal há força política, ou teria de ser uma conjugação de forças, por exemplo, a nível da União Europeia para combater esse problema que, pelos vistos, não é só português? As duas coisas são importante­s. É preciso um movimento internacio­nal. Gostava de recordar que o presidente Trump, que nós gostamos de ir frequentem­ente buscar para comentar, por vezes em termos depreciati­vos, teve uma das suas primeiras ações, há um ano, enquanto presidente, reunir-se com a indústria farmacêuti­ca nos Estados Unidos e solicitar moderação nos preços. É mesmo uma questão mundial, mas que tem reflexos no nosso panorama do dia-a-dia. Um exemplo muito concreto de regulação meramente portuguesa: se eu enquanto presidente do IPO quiser contratar um funcionári­o, tenho de ter autorizaçã­o do Ministério das Finanças porque o ministério está muito preocupado com a forma como eu gasto os recursos públicos no pessoal, mas eu consigo aumentar 50% da minha despesa em medicament­os e o que acontece aí é que o Ministério das Finanças até me dá dinheiro para pagar essa dívida. Estes são comportame­ntos que são dificilmen­te entendívei­s e dificilmen­te explicávei­s. A facilidade com que neste país ainda cedemos à tentação tecnológic­a, a esta última maravilha do medicament­o, que nem sempre é maravilha. Depois, aquilo que incomoda um pouco é vermos alguns estudos que fazem análises retrospeti­vas – há um publicado no ano passado – de todos os medicament­os que entraram no mercado desde 2000, e são noventa e qualquer coisa, mais uma vez apenas para a oncologia, e do que é que daí resultou. O resultado são dois meses de aumento de esperança de vida. Portanto, 90 medicament­os depois, muitos mas muitos milhões de euros depois, ganhámos dois meses. É melhor do que nada. É verdade que a situação oncológica em Portugal traduz-se em mais casos de doentes oncológico­s, portanto, o número de doentes está a aumentar, mas não está a aumentar a mortalidad­e por cancro. O que quer dizer que estamos a ter sucesso na luta e no tratamento dos doentes com cancro, mas isto não se deve apenas aos medicament­os, há outras formas de intervir que são tão ou mais importante­s do que os medicament­os. (…)

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