“O Estado não sabe administrar o preço dos medicamentos”
Farmacêuticas “estão a testar limites de até onde estamos disponíveis para gastar”. “IPO gastou meio milhão num medicamento para um doente por um ano”
ENTREVISTA DN/TSF FRANCISCO RAMOS PRESIDENTE DO IPO
“Para contratar um funcionário preciso da autorização do Ministério das Finanças; mas aumento em 50% a despesa com medicamentos e o ministério paga”
O IPO é conhecido pela maioria dos portugueses como uma entidade eficaz e de recursos humanos altamente qualificados, mas havendo cada vez mais pessoas com cancro tem a necessária capacidade de resposta? Muito obrigado pelo convite para assinalar este dia de luta contra o cancro em que todos os momentos de mensagem e de ação são muito importantes. O IPO é, de facto, uma instituição com um enorme prestígio – aliás considero-me muito privilegiado por ter oportunidade de presidir ao conselho de administração do IPO e, portanto, beneficiar do prestígio que a instituição tem –, esse prestígio foi construído ao longo de décadas, o IPO é quase uma instituição centenária, tem 94 anos de existência. Foi construído por uma cultura muito própria, uma cultura de atenção ao doente que não se esgota no momento em que o tratamento está a ser feito. Há, de facto, uma cultura muito própria, muito arreigada, muito vincada na instituição, que passa de geração em geração dos profissionais. Desde que o IPO existe que estamos lá para trabalhar em função dos doentes. Até pela natureza da doença das pessoas... A natureza vinca muito, o cancro ainda é uma palavra muito marcante, muito assustadora, mas sobretudo a capacidade de resposta que foi possível montar é muitíssimo interessante. Tem vindo a manter-se essa característica e a aumentar a quantidade de recursos que temos disponíveis, quer em termos de pessoas quer de recursos tecnológicos. Esta é uma batalha difícil, é uma batalha de muitos momentos de não vitória, chamemos-lhe assim, portanto muito desgastante, mas o saldo é positivo. Mas por mais recursos que vão tendo, muito provavelmente o número de doentes cresce a um ritmo superior. Para que a resposta fosse a 100% qual é a maior urgência: recursos humanos, equipamentos médicos, os edifícios? Recursos humanos, até porque essa é claramente a mais-valia. Ou seja, há um problema de edifícios? Sim, o IPO tem muitos anos, tem edifícios degradados, e temos feito um grande esforço de recuperação de instalações; os equipamentos? É importante ter tecnologia mais moderna, há tecnologia hoje muitíssimo complexa na área da radioterapia, na área da medicina nuclear, na área da genética, portanto a modernização tecnológica é relevante, mas o fundamental são as pessoas. Ou seja, nada disso, sem o conhecimento dos nossos médicos, dos nossos enfermeiros, dos nossos técnicos, teria, no fundo, um papel útil. (...) Há cerca de um ano, o Francisco Ramos dizia que os laboratórios aumentavam os preços dos medicamentos oncológicos, acrescentando que o preço desses medicamentos vendidos aos hospitais crescia cinco vezes mais do que para o mercado geral. O Estado não sabe negociar? O Estado não sabe sequer administrar esses preços, porque aquilo a que nós pudemos assistir nos últimos anos foi que sempre que o Estado atuou, e atuou com a sua força de Estado, esses preços reduziram-se, baixaram, foram mais propícios ao interesse público. Portanto, nessa matéria, quase que vemos uma completa vitória dos fornecedores de medicamentos, que nos últimos anos, por uma razão que eu não consigo explicar, decidiram testar os limites das autoridades públicas em termos de disponibilidade de dinheiro para a saúde. Os preços dispararam para muitas situações, para a oncologia sobretudo, mas não só, mas para a oncologia dispararam para situações inimagináveis. Isso tem também que ver com a pressão para a utilização de novos medicamentos, ou medicamentos inovadores, ou não é só isso? É isso, fundamentalmente. São medicamentos inovadores. O que se passa no mercado dos medicamentos é um certo desgaste de preço de medicamentos antigos, que hoje estão muito acessíveis, e preços astronómicos de alguns medicamentos novos ou na generalidade dos medicamentos novos. Posso dizer que o preço máximo atingido no IPO de Lisboa foi, no verão de 2016, meio milhão de euros por um medicamento, para um doente, du-
rante um ano. Meio milhão de euros. Não é um tratamento, é um medicamento, portanto uma dose unitária ao longo de um ano. É um recorde que se vai batendo, porque o anterior era de 400 mil euros. Exatamente. É um recorde que há de continuar a aumentar porque o movimento que existe é um movimento que as autoridades portuguesas – e não só, porque este problema é internacional – não conseguem controlar. Julgo que a indústria farmacêutica está a testar os limites de até onde é que estamos disponíveis para gastar dinheiro em saúde. Na realidade, em Portugal temos estado disponíveis. Depois, o que é que se passa na prática? Os hospitais têm dinheiro para pagar estes medicamentos a estes preços? Não. Ficam a dever. Aparecem as notícias da dívida dos hospitais. Há pressão para que essa dívida seja paga e no fim do ano há um mês, dezembro, em que lá vai uma tranche adicional de financiamento para os hospitais para pagar essas dívidas. De facto, até aqui, apesar destas reclamações que todos fazemos, no fim do dia acabamos por pagar e, digamos, tudo está bem apesar destes preços perfeitamente extraordinários. Há três anos, o IPO de Lisboa gastava em medicamentos 30 milhões de euros, no ano passado gastou 50, portanto um aumento de mais de 50% em três anos, o que é um ritmo insuportável. Não o convence a tese de que os laboratórios farmacêuticos cobram esses preços para medicamentos inovadores porque gastam centenas de milhões a descobri-los? Não, não. Não me convence rigorosamente nada e não me convence por dois motivos: É verdade que os laboratórios farmacêuticos gastam muito dinheiro a desenvolver e a investigar esses novos medicamentos, isso é verdade,
“O Estado não sabe sequer administrar esses preços (...) quase vemos uma completa vitória dos fornecedores de medicamentos, que decidiram testar os limites das autoridades públicas em disponibilidade de dinheiro para saúde”
“O recorde há de continuar a subir porque há um movimento que as autoridades portuguesas – e não só, porque este problema é internacional – não conseguem controlar”
“Há três anos, o IPO de Lisboa gastava 30 milhões em medicamentos, no ano passado gastou 50, portanto um aumento de mais de 50% em três anos, o que é um ritmo insuportável”
mas também é verdade que muitíssimo dessas verbas vem de fundos públicos; seja de subsídios diretos, seja de fundações públicas, seja de laboratórios públicos, seja das universidades públicas. Ou seja, no muito dinheiro que custa investigar um novo medicamento há muitas situações em que metade vem de fundos já públicos. Depois, basta ver as contas desses laboratórios, sobretudo internacionais, para ver que neste momento a indústria da saúde, dos medicamentos, é uma – a par da energia e da indústria das armas – das mais rentáveis. Num país como Portugal há força política, ou teria de ser uma conjugação de forças, por exemplo, a nível da União Europeia para combater esse problema que, pelos vistos, não é só português? As duas coisas são importantes. É preciso um movimento internacional. Gostava de recordar que o presidente Trump, que nós gostamos de ir frequentemente buscar para comentar, por vezes em termos depreciativos, teve uma das suas primeiras ações, há um ano, enquanto presidente, reunir-se com a indústria farmacêutica nos Estados Unidos e solicitar moderação nos preços. É mesmo uma questão mundial, mas que tem reflexos no nosso panorama do dia-a-dia. Um exemplo muito concreto de regulação meramente portuguesa: se eu enquanto presidente do IPO quiser contratar um funcionário, tenho de ter autorização do Ministério das Finanças porque o ministério está muito preocupado com a forma como eu gasto os recursos públicos no pessoal, mas eu consigo aumentar 50% da minha despesa em medicamentos e o que acontece aí é que o Ministério das Finanças até me dá dinheiro para pagar essa dívida. Estes são comportamentos que são dificilmente entendíveis e dificilmente explicáveis. A facilidade com que neste país ainda cedemos à tentação tecnológica, a esta última maravilha do medicamento, que nem sempre é maravilha. Depois, aquilo que incomoda um pouco é vermos alguns estudos que fazem análises retrospetivas – há um publicado no ano passado – de todos os medicamentos que entraram no mercado desde 2000, e são noventa e qualquer coisa, mais uma vez apenas para a oncologia, e do que é que daí resultou. O resultado são dois meses de aumento de esperança de vida. Portanto, 90 medicamentos depois, muitos mas muitos milhões de euros depois, ganhámos dois meses. É melhor do que nada. É verdade que a situação oncológica em Portugal traduz-se em mais casos de doentes oncológicos, portanto, o número de doentes está a aumentar, mas não está a aumentar a mortalidade por cancro. O que quer dizer que estamos a ter sucesso na luta e no tratamento dos doentes com cancro, mas isto não se deve apenas aos medicamentos, há outras formas de intervir que são tão ou mais importantes do que os medicamentos. (…)