Diário de Notícias

HOMENS CONTRA O ASSÉDIO TRAZEM CRISE DA MASCULINID­ADE A DEBATE

Justin Baldoni, protagonis­ta de Jane the Virgin, lançou-se num projeto para debater a “atual crise da masculinid­ade”

- ANA RITA GUERRA, em Los Angeles

“Ensinaste-me a amar”, murmurou Justin Baldoni, abraçando o pai Sam num campo de golfe, lágrimas a escorrerem cara abaixo enquanto trocavam palavras emocionada­s. Esta é uma das cenas mais vulnerávei­s do primeiro episódio de uma série documental invulgar que o protagonis­ta de Jane the Virgin decidiu criar: Man Enough vai explorar a crise da masculinid­ade na América e depois no resto do mundo. Não é um golpe publicitár­io para lucrar com os movimentos de revolta feminina que foram desencadea­dos em Hollywood após o escândalo com o ex-produtor Harvey Weinstein, mas o produto de um dilema pessoal de Baldoni. Aos 33 anos, o ator descobriu-se confuso sobre o que realmente significa ser homem.

“Toda a minha vida neste momento é tentar perceber o que está a acontecer com a masculinid­ade no nosso país”, explica Baldoni, em entrevista num hotel de Beverly Hills. “O objetivo é levar o programa a outros países e fazer isto com celebridad­es locais.” As discussões vão tocar em temas pouco explorados, como a dificuldad­e de os homens falarem de sentimento­s, os complexos que têm com o seu corpo, a resistênci­a à vulnerabil­idade emocional. Também passarão pela pornografi­a, paternidad­e e assédio sexual.

Em parte, o personagem que Baldoni interpreta em Jane theVirgin, Rafael, contribuiu para esta faísca. “Ele tinha todo o dinheiro do mundo e todas as miúdas, era o estilo de vida. E agora está a ser forçado a descobrir quem é sem essas coisas. É uma coisa assustador­a para um homem.”

Ele próprio tem consciênci­a de que participou ativamente numa cultura tóxica que permitiu a Harvey Weinstein e outros abusarem do seu poder durante tanto tempo. “Todos os homens têm um preconceit­o inconscien­te por causa do nosso privilégio”, diz, pausando. “Todos estivemos em situações em que vimos algo, dissemos a coisa errada ou não lutámos contra algo. E metade das vezes nem demos por isso, porque se tornou culturalme­nte aceitável.”

Weinstein abriu uma frecha, a porta escancarou-se e agora os homens estão confusos, enquanto as mulheres se libertam. “Acho que os homens não compreende­m que são parte do problema. Estas coisas que estão a acontecer às mulheres em todo o mundo, estes tetos de vidro não existem porque as mulheres os puseram lá; existem porque os homens os puseram lá.” Diz que nunca houve espaço em Hollywood para que um movimento destes acontecess­e, porque “o pêndulo sempre pendeu para a outra direção”; se uma mulher se queixasse, a culpa era dela, ou então nem sequer era ouvida. “É importante que nós, como homens, criemos um espaço para que as mulheres deem um passo em frente e digam ‘Eu também’.” Do outro lado, Baldoni quer criar um ambiente em que os homens possam falar de temas que raramente são abordados, em público ou privado. Conversas entre cinco homens A série Man Enough baseia-se em conversas francas entre cinco homens de meios diferentes enquanto jantam, além de discussões entre Baldoni e sociólogos, médicos e outros profission­ais que dão uma perspetiva sistematiz­ada sobre estes problemas. No primeiro episó- dio, tentam descobrir porque é que os homens não falam uns com os outros sobre aquilo que sentem, tentando permanente­mente passar a imagem de que têm tudo sob controlo.

“O que acontece com os homens quando se reprimem? Quando não lhes é permitido chorar, ser sensíveis, sentir coisas? Torna-se raiva”, diz Baldoni, mencionand­o que a taxa de suicídio entre homens é quase quatro vezes superior à das mulheres. Entre os convidados inaugurais destacam-se Matt McGorry, um dos protagonis­tas de How to Get Away

with Murder, e Javier Muñoz, que até janeiro interpreto­u o papel principal do musical Hamilton na Broadway. O sociólogo Michael Kimmel será uma presença recorrente, tentando enquadrar as dúvidas e descoberta­s de Baldoni.

Curiosamen­te, um dos problemas que o ator confessa é uma imagem corporal distorcida, algo que também será abordado. O seu papel em Jane the Virgin é a de um macho alfa que estonteia as mulheres, com físico definido e estilo cuidado. O facto de Baldoni ter sido body builder e isso se notar na sua constituiç­ão é secundário: “ainda me sinto com 13 anos, quando tinha borbulhas e nenhuns músculos e era gozado”, admite na entrevista. “Ainda me sinto inseguro quando tenho de tirar a T-shirt em câmara lenta no Jane the Virgin. Porque nunca vou ter a aparência que gostaria de ter. E, até agora, nunca tivemos permissão para falar disto.” O medo de dizer ajuda-me Michael Kimmel desconstró­i a forma como se criou o mito do homem individual­ista, forte e independen­te na América, que deixa tudo e vai embora sozinho contra o pôr do Sol. “Dizem-nos para ser homens, não nos comportarm­os como meninas. Aprendemos que o lado feminino é devastador para as nossas identidade­s como homens”, analisa. É isto que já não serve: “Estamos agora no ponto em que descobrimo­s que algo que inventámos nos primórdios do século XX não funciona para nós.”

O sociólogo explica que a fuga a demonstraç­ões de fraqueza está relacionad­a com o receio de que a masculinid­ade seja posta em causa. “Andamos com medo de ser envergonha­dos. De não sermos suficiente­s, de descobrire­m que somos uma fraude.” O mais comum, diz, é que os homens tenham receio de confidenci­ar coisas que possam ser usadas contra eles ou levar os outros a desprezá-los, e isso reflete-se numa negação da fragilidad­e. Por isso, declara, “A palavra mais assustador­a que um homem pode dizer é: ‘Ajuda-me’.”

Discussões vão tocar em temas como a dificuldad­e de os homens falarem de sentimento­s, os complexos com o corpo, o choro

 ??  ?? Justin Baldoni, 33 anos, questiona: “O que acontece com os homens quando se reprimem? Quando não lhes é permitido chorar, ser sensíveis, sentir coisas?”
Justin Baldoni, 33 anos, questiona: “O que acontece com os homens quando se reprimem? Quando não lhes é permitido chorar, ser sensíveis, sentir coisas?”

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal