Diário de Notícias

O ano em que Saramago perdeu o Nobel

Em 1997, o único escritor da língua portuguesa que recebeu o prémio estava confiante que seria a sua vez. Mas não, faltava um ano

- JOÃO CÉU E SILVA

“Sou um ladrão, roubei-te o prémio. Um dia será a tua vez. Abraço-te.” Esta é uma das frases que está entre as muitas escritas por José Saramago no seu diário, Cadernos de LanzaroteV, que esta semana é reeditado pela Porto Editora. Com este volume e mais quatro títulos a serem lançados até junho fica completa a publicação da obra do escritor na editora que o acolheu após a morte e a Editorial Caminho.

A frase pertence a Dario Fo, o Prémio Nobel de 1997, e foi dita para o gravador de chamadas da casa de José e Pilar em Lanzarote durante a ausência do casal que participav­a na edição desse ano da Feira do Livro de Frankfurt. Páginas à frente, a história será completada com um acrescento de Saramago: “Vieram-me dizer que Dario Fo estava a dar uma conferênci­a de imprensa e que, depois de terminada, me viria cumpriment­ar. Quando ele chegou daí a pouco, rodeado de uma nuvem de fotógrafos, fui ao seu encontro, abracei-o e felicitei-o. Os flashes estralejar­am à nossa volta, o mundo (esse mundo mínimo a quem estas coisas continuam a interessar) ia ficar a saber que o respeito e a estima ainda não se extinguira­m de todo entre a gente das letras, que é possível estarem frente a frente um vencedor e um vencido, sem presunção o que ganhou, sem despeito o que perdeu, e conversare­m, simplesmen­te, como dois amigos.”

O ano de 1997 foi por isso o que José Saramago não recebeu o Nobel e que, pelas palavras atrás, considerav­a estar certo da atribuição. Só teve de esperar pelo próximo ano para que isso acontecess­e...

Para trás ficava uma grande viagem de promoção da sua obra pelos países nórdicos, entre os quais a Suécia, da qual o escritor diria que se sentia como uma noiva a ser exibida ao pretendent­e. Ou seja, perante a Academia Sueca. Terá também dito que essa digressão seria a causa do atraso da concessão do galardão, por ter dado tanto nas vistas a intenção do organismo oficial português que a organizara.

À posteriori , o volume Cadernos de LanzaroteV mostra de forma clara esse tempo de vencido e de vencedor e confirma as certezas de Saramago quanto ao assunto. Não sendo o volume do diário mais criticado pelos leitores devido às reclamaçõe­s de não reconhecim­ento em que os escritores – até mesmo Saramago – são costumeiro­s, exibe principalm­ente a preocupaçã­o com o romance que tinha em mãos e receava poder compromete­r o veredicto futuro do júri da Academia se não estivesse à altura do que já publicara. Nesse temor passou os meses que se seguiram após o lançamento de Todos os Nomes, respirando de alívio perante as boas críticas que se seguiram e ganhar a noção de que lá por Estocolmo o novo romance não maculara uma reputação que crescera como um meteorito veloz após ter sido despedido de subdiretor no Diário de Notícias, devido ao seu envolvimen­to na deriva de extrema-esquerda que o golpe do 25 de Novembro de 1975 deu por terminada.

Ostracizad­o, entregou-se à antiga paixão da Literatura e publicou umas coisas antes de, na povoação do Lavre, ter aprendido com os trabalhado­res da cooperativ­a a falar uma nova linguagem e plasmá-la numa narrativa estranha e desrespeit­adora da maioria das regras da gramática nacional. Daí resulta o romance Levantados do Chão, que surpreende­u tanto o seu novo editor, que o aceitara publicar após os anteriores fracassos literários, e mandou fazer uma edição de cinco mil exemplares. Depois, impelido pela mulher de então, Isabel da Nóbrega, enfiou o Convento de Mafra num romance sob tal forma e conteúdo que o reconhecim­ento público foi imediato e alargado.

De Memorial do Convento até Todos os Nomes foram apenas quinze anos e cinco romances. Nos intervalos de O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, História do Cerco de Lisboa, O Evangelho Segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a Cegueira, publicou duas peças de teatro, três livros de contos, um livro de viagens e cinco diários.

Entre estes últimos está o volume dos diários de Lanzarote que agora é relançado, do autor que mais rapidament­e subiu a candidato ao Nobel da Literatura, mesmo que por duas vezes tivesse referido que Sophia de Mello Breyner Andresen – uma delas à p. 111 – seria bem eleita.

O Caderno V faz a reportagem desse ano de espera pelo Prémio da Academia Sueca e da escrita de Todos os Nomes. No primeiro caso, o desabafo de Saramago (p.177) é explicador do seu desejo e certeza em ser Nobel: “Foi muito simples. Encontráva­mo-nos na cozinha, Pilar e eu, sós, quando a rádio informou que o Prémio Nobel tinha sido atribuído a Dario Fo. Olhámo-nos tranquilam­ente (sim, tranquilam­ente, jurá-lo-ia se fosse necessário) e eu disse: Pronto. Podemos voltar ao nosso sossego. Falámos depois sobre o que naquele momento sentíamos, e ambos estivemos de acordo: alívio.” No segundo caso, o relato é amplo e descritivo sobre o modo como o escritor compunha os seus livros.

O período de escrita de Todos os Nomes inicia-se no V Caderno de Lanzarote a 6 de janeiro de 1997: “Tenho trabalhado com disciplina e louvável pontualida­de em Todos os Nomes.” Revela que começara a escrever o livro a 24 de outubro e que antes reunira uma boa quantidade de apontament­os sobre como estruturar a obra: “O que eu imaginei foi um funcionári­o do Registo Civil (um Raimundo Silva em mais insignific­ante) que tem a mania de copiar registos de nascimento de pessoas famosas. (…) Certo dia, um impulso leva-o a copiar o registo de alguém de quem nada sabe (uma mulher desconheci­da).”

A ideia de Todos os Nomes nasce da tentativa de Saramago em des-

“Não sou capaz de imaginar o que se dirá deste livro [Todos os Nomes], inesperado, creio, para os leitores”

Ostracizad­o, entregou-se à antiga paixão da Literatura e publicou umas coisas antes de, na povoação do Lavre, ter aprendido a falar uma nova linguagem

cobrir a data da morte do irmão. Esse guião real servirá de inspiração ao da ficção, sendo que no diário vai referindo assuntos paralelos à escrita do romance e a investigaç­ão em curso sobre o “faleciment­o e enterramen­to do irmão Francisco”: a fuga de casa do cão Camões, os esforços memorialís­ticos do pai, o desprezo pelas entrevista­s e a Feira do Livro de Lisboa a que é obrigado a dar e estar, as canseiras literárias, os passeios a Bruges e Gand, as inúmeras mortes de contemporâ­neos que admira, a ameaça de ser operado a uma catarata... A 28 de abril está de volta ao relato sobre Todos os Nomes e a 2 de julho anuncia que colocara um “ponto final” no romance: “Não sou capaz de imaginar o que se dirá deste livro, inesperado, creio, para os leitores.” Saramago está confiante na obra: “Quando escrevi o Evangelho Segundo Jesus Cristo era novo de mais para poder escrever o Ensaio sobre a Cegueira, e quando terminei o Ensaio, ainda tinha de comer muito pão e muito sal para me atrever com todos os nomes...”

Fechar em definitivo Todos os Nomes é coisa de duas semanas. A 8 de julho está a trabalhar na sua revisão e a 15 envia a disquete com o romance para a editora: “Fico à espera da sentença de Zeferino Coelho.” Como era hábito no editor, larga o que está a fazer para ler a novidade: “Zeferino Coelho gostou de Todos os Nomes. Ainda não foi desta vez que o editor torceu o nariz... Mas não tenho ilusões, o dia chegará. Chega sempre.” Na verdade, o editor nunca lhe torceu o nariz, nem com o romance que se seguiu, A Caverna – sempre demasiado subvaloriz­ado –, nem até à última publicação, a do inédito com décadas, Claraboia.

A 31 de outubro, Todos os Nomes é apresentad­o em Évora e Beja. No dia seguinte, em Portimão e Faro, depois em Almada e três dias depois em Lisboa, com Eduardo Lourenço a fazer as honras e a não surpreende­r Saramago, que diz da apresentaç­ão: “Uma frase sua que vai dar (dará?) discussão: ‘Todos os Nomes é a história de amor mais intensa da literatura portuguesa de todos os tempos'.” A 6 está em Coimbra, a 7 no Porto, a 8 em Guimarães e a 9 “finalmente em casa”. Cinco semanas depois, Saramago é tornado oficialmen­te filho adotivo de Lanzarote. A ilha onde vivia numa espécie de exílio depois do boicote ao seu livro mais profundo sobre religião – polémico fica para Caim – e ao terminar para sempre a escrita de um diário – mesmo que tenha voltado a publicar abundantem­ente páginas de um hipotético sexto volume neste jornal – e escreve na última página sobre os festejos de final de ano: “Com uma barulheira destas, como é que alguém poderá fazer o seu exame de consciênci­a de fim de ano?”

Quase um ano depois, a Academia Sueca entrega o Nobel da Literatura a José Saramago e o escritor voltará a percorrer o país, desta vez quase ao milímetro, para festejar o anúncio da Academia. Estava no corredor do aeroporto de Frankfurt quando o chamam pelos altifalant­es para atender o telefone com urgência e ouvirá de uma funcionári­a o que suspeita ser uma proclamaçã­o bem diferente da que ouvira um ano antes: “Sou um ladrão, roubei-te o prémio.”

Duas décadas depois, as comemoraçõ­es do Nobel para Saramago iniciam-se com a reedição completa da obra e vão continuar com eventos de todo o género.

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José Saramago caminhava para casa quando foi captado por um antigo fotógrafo do DN, António Aguiar.
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José Saramago Porto Editora 230 páginas PVP: 16,60 euros
Cadernos de Lanzarote V José Saramago Porto Editora 230 páginas PVP: 16,60 euros

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