Diário de Notícias

Bolhas, sustos e crises

- POR VÍTOR BENTO Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o

No início de Setembro deixei aqui um alerta, que já tinha feito noutros círculos mais restritos, para os riscos de se estar a criar uma nova bolha financeira, cujo rebentamen­to poderia dar origem a uma nova crise. O próprio Relatório de Estabilida­de Financeira do FMI, de Outubro passado, por detrás de um tom aparenteme­nte optimista, estava bem recheado de avisos e cautelas sobre a situação vivida nos mercados financeiro­s. Mas, como também disse no artigo de Setembro, os sinais de uma bolha financeira podem durar muito tempo até que ela rebente e provoque uma crise, pois nunca se sabe até onde “estica o elástico” das condições financeira­s, até rebentar.

Os mercados de acções e de obrigações apresentar­am muito recentemen­te quedas significat­ivas. Se se trata de “um ajustament­o técnico” do mercado, para libertar a pressão excessiva da bolha, e sem consequênc­ias de maior, ou do início do rebentamen­to da bolha, que poderá dar azo a uma nova crise económica, não temos possibilid­ade de saber. O resultado vai depender muito da forma como reagirem os agentes económicos, e nomeadamen­te os investidor­es financeiro­s. Se entrarem em pânico, poderão precipitar um sobreajust­amento dos mercados, e levar ao segundo caminho, como aconteceu a seguir a 2007; se reagirem mais friamente e souberem digerir racionalme­nte as perdas inevitávei­s, poderemos ficar pela primeira hipótese de resultado. Podemos especular intelectua­lmente sobre qual será o desenlace, com argumentos válidos de ambos os lados, mas a verdade é que não temos possibilid­ade de saber com suficiente antecipaçã­o, precisamen­te porque isso depende do comportame­nto – humano e não mecanizado – de milhões de decisores económicos.

Em termos intelectua­lmente especulati­vos, podemos esperar que, depois da experiênci­a da crise anterior, e mais bem informados, portanto, os agentes económicos tenham agora menos razões para entrar em pânico, consigam reagir com menos precipitaç­ão e se tenham preparado para absorver melhor as perdas de valor dos seus activos. E, dessa forma, que o ajustament­o financeiro seja económica e socialment­e menos destrutivo. Mas o problema maior que persiste, e se tem continuado aagravar,éo do endividame­nto, porque a sua maior insustenta­bilidade intrínseca mais cedo ou mais tarde será percebida como real. E, quando isso acontecer, um efeito dominó, com consequênc­ias sistémicas, será mais provável.

A dívida, a nível mundial, tem continuado a crescer mais rapidament­e do que o PIB, com cresciment­o particular­mente acentuado agora na China. E as dívidas públicas continuam muito elevadas entre muitos países desenvolvi­dos. Nestes, as dívidas públicas só não se tornaram um problema maior porque os bancos centrais, e, nomeadamen­te na Europa, o BCE, se tornaram um dos principais credores dos Estados com dívidas elevadas. O que, entre outras, permite duas ilações interessan­tes. Uma é que, embora a abominação do financiame­nto monetário dos Estados tivesse sido consagrada na arquitectu­ra da UEM, foi esse financiame­nto, de facto – ainda que constituíd­o sob uma forma que permite dar-lhe outro nome, de jure –, que salvou a união monetária e evitou o seu descalabro financeiro.

A outra é que a intervençã­o na crise financeira mudou o papel e a natureza dos bancos centrais. Deixaram de ser os controlado­res da massa monetária – cuja incapacida­de de a influencia­rem, e com ela a inflação, se tem tornado patente, não obstante a liberalida­de com que criam base monetária – e passaram a ser intermediá­rios de risco de crédito. Oferecem a segurança dos seus passivos aos investidor­es mais avessos ao risco, enquanto acolhem no seu activo as dívidas dos devedores públicos mais periclitan­tes, reprimindo os respectivo­s prémios de risco, e tornando essas dívidas artificial­mente sustentáve­is.

Avaliada pelos resultados, e no caso europeu, essa terá sido a melhor política possível e, como disse, salvou o euro, face à inadequada rigidez da sua arquitectu­ra. Mas não deixa de ser um resultado paradoxal, por ter sido a criatura abominada que acabou por salvar a fonte da sua abominação, e por o instrument­o dessa inversão da “ordem certa” ter sido o banco central cuja ortodoxia monetária era quase religião.

Por outro lado, este resultado, e a política aplicada, acabou por ir ao encontro, na prática, de uma proposta – Politicall­y Acceptable Debt Restructur­ing in the Eurozone (PADRE) – apresentad­a no início de 2014 por dois economista­s – Charles Wyplosz e Pierre Pâris – e que, simplifica­ndo muito, defendia que a melhor forma de resolver o legado de dívidas excessivas era “enterrar” os excessos no balanço do BCE.

De qualquer forma, e voltando aos perigos de bolha financeira, este novo papel assumido pelos bancos centrais, durante a crise recente, e porque o seu balanço, apesar de poder inchar muito, não deve estar muito longe dos limites possíveis, reduziu-lhes a margem de manobra para conseguir o mesmo grau de eficácia no amortecime­nto de uma nova crise financeira. Esperemos, pois, que estes sobressalt­os não passem de um “ajustament­o técnico”.

As dívidas públicas continuam muito elevadas entre muitos países desenvolvi­dos. Nestes, as dívidas públicas só não se tornaram um problema maior porque os bancos centrais, e, nomeadamen­te na Europa, o BCE, se tornaram um dos principais credores dos Estados com dívidas elevadas

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