Bolhas, sustos e crises
No início de Setembro deixei aqui um alerta, que já tinha feito noutros círculos mais restritos, para os riscos de se estar a criar uma nova bolha financeira, cujo rebentamento poderia dar origem a uma nova crise. O próprio Relatório de Estabilidade Financeira do FMI, de Outubro passado, por detrás de um tom aparentemente optimista, estava bem recheado de avisos e cautelas sobre a situação vivida nos mercados financeiros. Mas, como também disse no artigo de Setembro, os sinais de uma bolha financeira podem durar muito tempo até que ela rebente e provoque uma crise, pois nunca se sabe até onde “estica o elástico” das condições financeiras, até rebentar.
Os mercados de acções e de obrigações apresentaram muito recentemente quedas significativas. Se se trata de “um ajustamento técnico” do mercado, para libertar a pressão excessiva da bolha, e sem consequências de maior, ou do início do rebentamento da bolha, que poderá dar azo a uma nova crise económica, não temos possibilidade de saber. O resultado vai depender muito da forma como reagirem os agentes económicos, e nomeadamente os investidores financeiros. Se entrarem em pânico, poderão precipitar um sobreajustamento dos mercados, e levar ao segundo caminho, como aconteceu a seguir a 2007; se reagirem mais friamente e souberem digerir racionalmente as perdas inevitáveis, poderemos ficar pela primeira hipótese de resultado. Podemos especular intelectualmente sobre qual será o desenlace, com argumentos válidos de ambos os lados, mas a verdade é que não temos possibilidade de saber com suficiente antecipação, precisamente porque isso depende do comportamento – humano e não mecanizado – de milhões de decisores económicos.
Em termos intelectualmente especulativos, podemos esperar que, depois da experiência da crise anterior, e mais bem informados, portanto, os agentes económicos tenham agora menos razões para entrar em pânico, consigam reagir com menos precipitação e se tenham preparado para absorver melhor as perdas de valor dos seus activos. E, dessa forma, que o ajustamento financeiro seja económica e socialmente menos destrutivo. Mas o problema maior que persiste, e se tem continuado aagravar,éo do endividamento, porque a sua maior insustentabilidade intrínseca mais cedo ou mais tarde será percebida como real. E, quando isso acontecer, um efeito dominó, com consequências sistémicas, será mais provável.
A dívida, a nível mundial, tem continuado a crescer mais rapidamente do que o PIB, com crescimento particularmente acentuado agora na China. E as dívidas públicas continuam muito elevadas entre muitos países desenvolvidos. Nestes, as dívidas públicas só não se tornaram um problema maior porque os bancos centrais, e, nomeadamente na Europa, o BCE, se tornaram um dos principais credores dos Estados com dívidas elevadas. O que, entre outras, permite duas ilações interessantes. Uma é que, embora a abominação do financiamento monetário dos Estados tivesse sido consagrada na arquitectura da UEM, foi esse financiamento, de facto – ainda que constituído sob uma forma que permite dar-lhe outro nome, de jure –, que salvou a união monetária e evitou o seu descalabro financeiro.
A outra é que a intervenção na crise financeira mudou o papel e a natureza dos bancos centrais. Deixaram de ser os controladores da massa monetária – cuja incapacidade de a influenciarem, e com ela a inflação, se tem tornado patente, não obstante a liberalidade com que criam base monetária – e passaram a ser intermediários de risco de crédito. Oferecem a segurança dos seus passivos aos investidores mais avessos ao risco, enquanto acolhem no seu activo as dívidas dos devedores públicos mais periclitantes, reprimindo os respectivos prémios de risco, e tornando essas dívidas artificialmente sustentáveis.
Avaliada pelos resultados, e no caso europeu, essa terá sido a melhor política possível e, como disse, salvou o euro, face à inadequada rigidez da sua arquitectura. Mas não deixa de ser um resultado paradoxal, por ter sido a criatura abominada que acabou por salvar a fonte da sua abominação, e por o instrumento dessa inversão da “ordem certa” ter sido o banco central cuja ortodoxia monetária era quase religião.
Por outro lado, este resultado, e a política aplicada, acabou por ir ao encontro, na prática, de uma proposta – Politically Acceptable Debt Restructuring in the Eurozone (PADRE) – apresentada no início de 2014 por dois economistas – Charles Wyplosz e Pierre Pâris – e que, simplificando muito, defendia que a melhor forma de resolver o legado de dívidas excessivas era “enterrar” os excessos no balanço do BCE.
De qualquer forma, e voltando aos perigos de bolha financeira, este novo papel assumido pelos bancos centrais, durante a crise recente, e porque o seu balanço, apesar de poder inchar muito, não deve estar muito longe dos limites possíveis, reduziu-lhes a margem de manobra para conseguir o mesmo grau de eficácia no amortecimento de uma nova crise financeira. Esperemos, pois, que estes sobressaltos não passem de um “ajustamento técnico”.
As dívidas públicas continuam muito elevadas entre muitos países desenvolvidos. Nestes, as dívidas públicas só não se tornaram um problema maior porque os bancos centrais, e, nomeadamente na Europa, o BCE, se tornaram um dos principais credores dos Estados com dívidas elevadas