Diário de Notícias

Amores para a vida?

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Nos momentos da verdade, os reais sentimento­s vêm sempre ao de cima. É assim na vida ou no amor por via do carácter ou da afectivida­de, conforme o domínio em que se expressa. Assim é também na política por via das opções de classe. A recente rejeição pelo PS da reposição do valor do trabalho extraordin­ário, reduzido a metade a pretexto da troika pelo governo PSD-CDS, parece comprovar esse aforismo popular de que há amores que não se esquecem.

É-se levado a admitir que a evidência, revelada nos últimos tempos, de que o cresciment­o económico tem na afirmação e conquista dos direitos o seu melhor aliado e o factor que o sustenta, não parece ser argumento suficiente. Há quem teime em não o aceitar. Os ganhos devidos aos trabalhado­res e que a sua luta contribuiu para alcançar (seja a reposição dos feriados ou o aumento do salário mínimo nacional) foram-no num quadro de frontal resistênci­a do patronato, que, incapaz de se lhe opor inteiramen­te, tem procurado pela sua acção torpedeá-los. Inconforma­do e tendo na legislação laboral o instrument­o que lhe foi facultado, o capital prossegue uma acção para assegurar medidas que lhe permita manter e intensific­ar os níveis de exploração que ambiciona. A evidenciá-lo aí estão os dados que mostram a reduzida evolução dos salários, a desregulaç­ão dos horários de trabalho, a rasura de direitos por via da caducidade da contrataçã­o colectiva.

Uma acção que encontra, no passado e no presente, a cumplicida­de de sucessivos governos por via de uma legislação moldada aos interesses das confederaç­ões patronais. A legislação laboral, mais em concreto a eliminação das normas gravosas que têm marcado a sua evolução, surge como questão decisiva. Não há nesta matéria postura de meias-tintas, exercícios de equilíbrio em cima do muro ou retóricas sobre copos meio cheios ou vazios. Ou se opta por reequilibr­ar os pesos já em si distintos entre capital e trabalho e se rearmam legalmente os trabalhado­res para não estarem em absoluta desvantage­m ou se faz o inverso. Não há arbitragem que valha a uma disputa na arena do conflito de classes em que o “juiz” impõe a uns que entrem de mãos vazias enquanto os oponentes se apresentem armados até aos dentes. Ou se opta por eliminar a caducidade na contrataçã­o colectiva introduzid­a em 2003, que se constitui como uma debulhador­a de direitos, ou se escolhe o campo dos que vêem aí uma arma de chantagem para forçar a troca direitos pela existência de contratos. E não se invoque em defesa da caducidade o aumento do número de trabalhado­res abrangidos por contratos colectivos que, de facto, nem existe. A questão não é essa, mas sim a de saber se os direitos aumentaram num quadro em que patronato, com o patrocínio da UGT, tudo faz para os rasurar. Clarifique-se de que lado se está em matéria de horários de trabalho. Se se pretende cobrir a sua total desregulaç­ão por via do banco de horas desestrutu­rando a vida familiar ou se se quer dignificar a vida dos trabalhado­res, assegurand­o que os avanços tecnológic­os se reflictam em menos e não mais tempo de trabalho. E sobretudo rejeitem-se as elucubraçõ­es sobre tempos médios de trabalho, construído­s para ter os trabalhado­res sequestrad­os pelos ritmos de produção e o estrito interesse da empresa, ou os enaltecime­ntos a altruísmos empresaria­is que asseguram creches abertas 24 horas para depositar crianças que deviam ter um ritmo de vida familiar adequado ao seu cresciment­o. Os tempos próximos ajudarão a esclarecer posicionam­entos. Assim como ajudarão a vencer lapsos de memória dos que, olhando para o Código de Trabalho, só descortina­m normas gravosas associadas ao governo de Passos Coelho, esquecendo a demolidora ofensiva anti-laboral que foi imposta em 2003 por PSD-CDS e em 2009 pelo PS. Sendo certo que com a sua luta os trabalhado­res resistiram e conquistar­am direitos, e continuarã­o a fazê-lo, não é indiferent­e o quadro de legislação laboral que têm de enfrentar.

Em matéria de direitos dos trabalhado­res há quem, empedernid­o por décadas de serviços prestados à exploração, se apresente sem cura à vista. É o caso de Silva Peneda, uma reminiscên­cia do cavaquismo que ainda esbraceja. Em carta aberta aos “parceiros sociais”, Peneda lança, a propósito da Autoeuropa, o repositóri­o de calúnias contra o PCP ao afirmar que “a sua sobrevivên­cia como força política depende da desordem e da falta de confiança que consiga instalar no tecido económico”. É bem possível que Peneda figure entre os que, a pretexto da estabilida­de das multinacio­nais, partilhe da convicção de que vale tudo e a tudo a elas se tolerará, seja a falsificaç­ão dos resultados dos testes de poluição ou este escândalo de uso de humanos para testar emissões poluentes por parte da Volkswagen. Sabendo de ciência certa que emissões poluentes nunca fizeram bem aos neurónios, é de supor que os dislates argumentat­ivos do texto de Peneda resultem dos efeitos poluidores de uma eventual passagem que tenha feito por essa multinacio­nal alemã.

A legislação laboral, mais em concreto a eliminação das normas gravosas que têm marcado a sua evolução, surge como questão decisiva. Não há nesta matéria postura de meias-tintas, exercícios de equilíbrio em cima do muro ou retóricas sobre copos meio cheios ou vazios

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JORGE CORDEIRO MEMBRO DO SECRETARIA­DO DO COMITÉ CENTRAL DO PCP

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