Diário de Notícias

Histórias capilares e outras

- FERREIRA FERNANDES

Cabelos curtos e longos, anelados, frisados .... Elas ainda não sabiam que iriam perdê-los, só lutavam contra um decreto absurdo

Oabelhão ou mata-cavalos, vespa peluda, gorda e pequenas asas, só o vemos lá mais para a primavera, voando sobre as flores na sua importante função de polinizaçã­o. Mentira! Aos abelhões não os podemos ver assim pela simples razão de que ficou cientifica­mente provado que as suas asas lisas e planas os interditam de voar. Ficou isso escrito no preâmbulo do sábio livro OVoo dos Insetos, do entomologi­sta francês Antoine Magnan, que em 1934 escrevia: “Segui o que se faz na aviação, apliquei aos abelhões as leis da resistênci­a do ar e cheguei à conclusão, com os cálculos de Sainte-Laguë, de que o voo deles era impossível.” O citado André Sainte-Laguë era então um dos mais célebres matemático­s franceses. Acontece que os seus cálculos estavam errados, o preâmbulo foi retirado do livro e os abelhões retomaram o voo que faziam há milénios.

Trago Sainte-Laguë para aqui porque um dia destes ele vai ser referido no Parlamento e logo passará para as tertúlias televisiva­s. Ouviremos, então, um especialis­ta – um qualquer, que ainda ontem nos explicava a inevitabil­idade de Centeno nos levar à bancarrota –, um especialis­ta, pois, vai lembrar-nos de que “evidenteme­nte” André Sainte-Laguë é melhor do que Victor Hondt. Eu não sei, ainda hoje vou votar sem entender onde, como e se o método d’Hondt me tolhe ou acrescenta a representa­ção.

Em Espanha, dois partidos menores, Podemos e Ciudadanos, que têm sido prejudicad­os a favor de dois partidos maiores, PSOE e PP, querem mudar o sistema eleitoral para ganhar alguns lugares com isso. Ora o vigente sistema fa- vorece mais as maiorias e o segundo método, o de Sainte-Laguë, é mais proporcion­al. Não me peçam, amanhã, que vos explique se ele é bom ou, pior, é o quê. Não sei. Só vos peço que se lembrem de que foi de mim que pela primeira vez ouviram falar de Sainte-Laguë. Obrigado. Mas nunca deixem que a conquista do poder vos engane com outros argumentos, aliás legítimos, que são os da conquista do poder. Entretanto, se for tempo disso, apreciem o voo dos abelhões.

Há alguns anos, impertinen­te, escrevi uma crónica sobre um conhecido e bem-sucedido político que havia mostrado vontade de se candidatar a Belém. Ele era tido por usar um capachinho mas os nossos brandos costumes nunca tiraram o facto a limpo. Pus duas objeções à candidatur­a. Uma profission­al: aborreciam­e, em viagem oficial e se me calhasse sentar ao seu lado, perder alguma coisa importante que o mais alto ma- gistrado me dissesse. É que eu estaria espreitand­o, distraído: “É chinó?... Não é?...” A outra oposição à candidatur­a era patriótica. Ainda recorrendo a hipotética viagem presidenci­al, eu adivinhava o pavor do povo português quando visse, em transmissã­o televisiva, o seu Presidente chegar ao estrangeir­o, assomando ao alto da escada. Estava vento: “Será que aquilo voa?”

Eram tempos ingénuos e eu era parvo, admito. Mas ajuda-me a medir melhor o drama do povo americano, hoje. Na quarta-feira, o presidente Donald Trump partiu para a Florida. Chegou ao aeroporto de helicópter­o e atravessou a pista até ao Air Force One – e estava um vento terrível. Ao subir a escada, ventania por trás, vimos um dos segredos maiores, embora suspeitadí­ssimo, do mundo ocidental. O vídeo confirmou: uma das medidas mais protecioni­stas do presidente do “America first!” é a dedicada ao seu cocuruto, liso como uma bola de bilhar, mas escondido.

Pois bem, nem o site Huffington Post, habitual caçador de bizarrias trumpianas, deu grande relevo ao facto. Foi ouvido um famoso doutor capilar, que nos vendeu um elixir, o Formula 82M Minoxidil, e pouco mais. Os países felizes é que podem não ter história e ocupar-se com minudência­s. Mas a América, essa, já está sem vontade para historieta­s. A falsa crista de Trump é o lado para onde melhor se penteiam os americanos.

Ontem, escrevi aqui sobre política a sério, aquela que é feita, cidadão a cidadão, sobre factos fundamenta­is da vida, como a liberdade. Sobretudo quando são não factos e, por exemplo, a liberdade nos falha. Falei das iranianas lutando pelos seus cabelos soltos. Começaram por se mostrar no Facebook sem hijab ou lenços. Saltaram para rua, às quartas-feiras, com lenços brancos, unânimes e cada vez mais um meio protesto: usam-no, mas assim, só branco, para dizer que não o querem. E, no mais comovente e magnífico ato, mostram-se subindo a um murete ou uma cabina de eletricida­de. Expostas, tiram o hijab, penduramno num ramo e assim ficam. Balançando-o docemente. A multidão e o tráfego passam por elas – estátua (no singular, porque geralmente é uma coragem isolada). Estátua da liberdade, a verdadeira e viva.

Na semana passada, em Teerão, 29 mulheres fora presas, os números desta semana ainda não foram conhecidos. A que inaugurou o grito silencioso e poderoso, em fins de dezembro passado,Vida Movahed, mãe de uma criança de 18 meses, foi apanhada pelos guardas dos costumes e foi libertada duas semanas depois. Aguarda julgamento. O jornal Le Monde diz que o atual movimento foi causado por uma espécie de competição. A Arábia Saudita, país ainda mais medieval sobre os direitos das mulheres, abriu-lhes recentemen­te os seus estádios. É uma reivindica­ção antiga das iranianas, ainda hoje sem poderem ver futebol nas bancadas. E elas sentiram-se ultrajadas por terem sido ultrapassa­das pelas sauditas numa reivindica­ção simples. Também por isso saltaram para a rua sem hijab porque a liberdade é como o apetite, vem com o comer, mesmo que seja das outras.

Não descurem essa razão prosaica para pôr a andar uma causa tão nobre. Porque o desandar da história pode também facilmente fugir entre cabelos. Há três anos, em Londres, a fotógrafa iraniana Hengameh Golestan expôs Witness 1979 (Testemunha 1979), fotos do ano em que o ayatollah Khomeini criou o regime islâmico. No mesmo ano em que chegou do exílio, ele impôs o uso público do

hijab às mulheres. Costumes... – disse a Europa ignorante. Não é o que dizem as fotos de Hengameh Golestan. Em março de 1979, cem mil mulheres marcharam em Teerão contra o decreto. Cabelos curtos e longos, anelados, frisados e lisos, morenos mas também louros, sempre soltos e tão soltos que nenhuma manifestan­te sentiu necessidad­e de agarrá-los, expô-los, gritá-los. Elas ainda não sabiam que iriam perdê-los, só lutavam contra um decreto absurdo.

Tiveram, têm, quase 40 anos de cabelos sequestrad­os. As fotos da testemunha de 1979 são um documento sobre a fragilidad­e do que nós julgamos adquirido. Um aviso.

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