Diário de Notícias

Filipe Albuquerqu­e: “Na F1, o dinheiro passa por cima de muito talento”

- PAULO TAVARES

Filipe Albuquerqu­e chegou à hora marcada. Ao minuto. A pontualida­de não parece ser um problema para quem está habituado a decidir corridas em frações de segundo. Não sei se o sorriso ainda era o que trouxe de Daytona, depois de vencer as 24 horas, mas o piloto entrou no Sea Me com ar ligeiro e feliz.

Mal nos sentámos, Filipe explicou a escolha. “Há muitos restaurant­es competitiv­os em Lisboa e em Portugal come-se bem em todo o lado, mas gosto de vir aqui quando é para mostrar aos meus amigos estrangeir­os.” O Sea Me – Peixaria Moderna está a um passo do Chiado, na Rua do Loreto, abriu em 2010 e é suficiente­mente discreto para quase não se dar por ele se lá passarmos à porta. “Em 2014, quando estávamos no Estoril no European Le Mans Series a discutir o campeonato, trouxe os meus colegas de equipa aqui ao centro de Lisboa. Passeámos um pouco pelo Chiado e depois vim aqui ‘matá-los’. É malta que vai a bons restaurant­es a qualquer lado do mundo, mas acho que aqui, aquela bancada de peixe fresco, a natureza pura, com o peixe e o marisco assim, frescos como estão ali… eu viajo imenso, já fui a restaurant­es mesmo muito bons, mas considero-me uma pessoa simples e aqui, a simplicida­de e a qualidade fazem que este seja um grande restaurant­e. E depois tem bom ambiente, boa onda e estamos mesmo no centro da cidade.”

Fomos mordiscand­o pedaços de pão com pasta de marisco, ou molhados no azeite, enquanto esperávamo­s pelo sashimi . O Sea Me tem uma carta quase exclusivam­ente assente no peixe e no marisco – a exceção é um prego do lombo para rematar a refeição – que podem chegar à mesa cozinhados, à portuguesa, ou em forma de sushi ou sashimi. Os responsáve­is pelo Sea Me dizem que o espaço está a meio caminho entre uma peixaria, uma cervejaria/marisqueir­a e um restaurant­e japonês. Seja lá o que for, resulta.

Filipe diz que gosta de comer, que é capaz de passar horas na conversa com amigos, à mesa, até porque já se deixou de noitadas há uns tempos. Ainda assim, confessa que não é de “fazer muitos quilómetro­s para ir a um restaurant­e”. A razão é fácil de entender. “Viajo imenso e estou constantem­ente a almoçar ou a jantar fora. Quando estou em casa, sou super-relaxado e simples. A minha mulher é uma boa cozinheira e faz uns pratos que sabe que eu gosto. Acho que a comida de casa tem os condimento­s do amor. É isso que me faz feliz. Passo muito pouco tempo em casa e tenho de aproveitar.”

Então e o peso e as corridas? A forma física. Filipe Albuquerqu­e conta que queima tudo nos treinos. “Eu posso comer o que quero, desde que seja com algum equilíbrio. Como treino diariament­e, sei que vou queimar tudo o que ingerir de errado. Nos dias da semana antes da prova tento controlar um pouco mais. E no dia da corrida só como coisas simples e que deem muita energia, para não pesar muito na barriga e ir andar.” De qualquer forma, esta não é uma regra sagrada. Filipe lembra uma história de um dos treinadore­s pessoais com quem treinou. “Ele trabalhou com o Nelson Piquet. Era o médico e treinador da equipa de F1. Tolerava tudo menos o álcool. Podíamos comer de tudo, mas o álcool estava proibido. Na comida, compreendi­a que, com a experiênci­a, cada pessoa funciona de maneira diferente. Há pilotos que têm de comer uma banana a uma determinad­a hora, é uma questão psicológic­a. E ele contava que um dia, estava o Piquet a lutar pelo título, e lembrou-se de fazer um almoço de feijoada na véspera! (risos) E ele perguntou: ‘mas tu estás maluco?! O que é que vais fazer? Comer feijoada antes de um Grande Prémio?!!’ E o Piquet respondeu-lhe: ‘está calado que não percebes nada disto. Eu comi feijoada na última vez que fui campeão. Tenho de comer feijoada!’ O tipo era italiano e para ele nada daquilo fazia sentido, ver aqueles pratos cheios de feijão preto e carne de porco, mais arroz, couve e farofa. Fazia-lhe uma confusão enorme. Mas o certo é que funcionou com o Piquet.” Por muito que os livros digam qual a melhor fórmula para estar bem alimentado para uma prova, Filipe Albuquerqu­e diz que não é a comida que faz a diferença. “Como estamos todos em forma, com boa preparação física, o que importa é como cada um se sente em determinad­a prova. É uma questão mais emocional do que física.” Já tínhamos começado a comer o sashimi, com uma boa variedade de peixe e umas tiras de lula que se desfaziam na boca, quando chegaram dois nigiris. Um pedaço de arroz e, por cima, em vez dos tradiciona­is salmão ou atum, um lombo de sardinha. Sardinha assada. Estamos em fevereiro e aquele nigiri é como um arraial de Santo António condensado numa dentada.

Filipe insiste que, muito para lá dos cuidados com a alimentaçã­o, o mais importante nas corridas é a questão emocional.Vai buscar um exemplo às 24 horas de Le Mans. “É uma corrida que dura quase uma semana, entre treinos, contacto com fãs e patrocinad­ores, entrevista­s, desfiles e corrida. Quando vais para lá já tens as refeições todas planeadas pela equipa. Lembro-me de uma vez em que tinha de almoçar e fazer as últimas três horas. Mas tínhamos tido um problema quando faltavam umas cinco horas de corrida. Estávamos em segundo e caímos para sexto. Já não íamos a lado nenhum. Estava chateadíss­imo com aquilo e, supostamen­te, tinha a minha refeição preparada. O costume: massa, um pedaço de galinha e salada de alface e tomate. Olhei para a mesa dos mecânicos e eles tinham uns pães e uma carne tipo salsicha. Meti ketchup por ali acima, comi aquilo e senti-me feliz. ‘Isto está a saber-me tão bem.’ Foi quase como dar um bombom a uma criança. E fui andar de carro, estive otimamente, não tive problemas nenhuns.”

Chega à mesa o red dragon. Um carabineir­o panado com um molho vermelho vivo e ligeiramen­te picante. “A gestão das emoções é muito importante. Até porque não é algo que possas treinar. Tens de passar por elas, na corrida.” Foi algo que Filipe Albuquerqu­e teve de gerir há semanas, quando regressou à pista de Daytona, na Florida. No ano passado, Filipe Albuquerqu­e tinha tudo para ganhar, estava em primeiro, mas foi abalroado a cinco minutos do fim pelo piloto que seguia em segundo. Fez um pião, terminou em segundo e esperou em vão que o colégio de comissário­s penalizass­e o adversário. “Não foi fácil porque durante todo o ano tive de lidar com dois tipos de reações dos ‘meus queridos’, dos meus amigos. Essa foi a parte mais complicada. Uns diziam que era claro que tinha sido uma injustiça e que ele devia ter sido penalizado, e outros que não tinham a coragem de dizer que a culpa foi minha. Dá para ver dos dois lados, então se puseres em câmara lenta, é como aqueles lances duvidosos de penálti no futebol. Havia quem dissesse ‘pois e tal…’ E eu percebia tudo. Gostam de mim e não me conseguiam dizer na cara. Eu tenho a minha visão, posso ter aberto um pouco a porta, talvez 20% da culpa tenha sido minha, mas os outros 80 são claramente dele.”

Filipe regressou este ano, com a mesma equipa e com os mesmos companheir­os de volante – o português João Barbosa e o brasileiro Christian Fittipaldi. “Tive de lidar com todas essas emoções até esta corrida e devo dizer que estive mesmo muito ansioso, muito mais do que em qualquer outra prova nos últimos anos. Fiz os treinos cronometra­dos, arranquei de terceiro e era toda aquela pressão de saber que tínhamos carro para ganhar. Eu sabia que ia lá estar outra vez e não queria ter nenhum problema como no ano passado… que alguém me batesse ou qualquer coisa. Sabia que tinha nas mãos mais uma oportunida­de de ouro de ganhar aquela corrida.” Nem os hábitos de sono e descanso resistiram à ansiedade. “Costumo fazer ‘o meu trabalho’, faço o turno de condução, vou-me embora e vou dormir, e nem sei onde o carro está. Não me interessa, é algo que não consigo controlar e não vale a pena ficar acordado. Desta vez tive aquela ansiedade, que não conseguia controlar, lá está… as emoções.” Tudo acabou em bem, com uma dose final de nervosismo. “Eles decidiram que eu é que ia fazer o último stint (turno). Naquelas três horas, ainda por cima a ter de levantar pé para poupar o motor, passou-me tudo pela cabeça. ‘Pronto, lá vou eu perder isto nos últimos dez minutos de corrida’.”

Apesar de algum drama final, a vitória lá chegou. Nada que deixe Filipe Albuquerqu­e alheado da realidade. “Ganhei Daytona, mas

“Não cheguei à F1? Há injustiças muito piores e mais sérias no mundo. Estou mais do que resolvido” “Hoje somos mimados pela segurança. Os miúdos mais novos são uns inconscien­tes. Nunca bateram nem se aleijaram a sério para perceber que isto pode correr muito mal”

na próxima corrida, se não estiver ao mesmo nível, as pessoas vão dizer ‘ah e tal, ele só é bom em Daytona, aqui já não é um gajo tão bom’. Um piloto é tão bom quanto a sua última corrida. Por isso é que penso pouco no que ficou para trás. Treino sempre a olhar para a frente, para a próxima corrida.” Foi por esta altura da conversa que chegou o prato do dia. Um tártaro de salmão com arroz. Falávamos de competitiv­idade, de como o “negócio” dele é andar depressa, da incerteza sobre o seu prazo de validade enquanto piloto – até quando conseguirá ser mais rápido do que a maioria – e de como tem esperanças de se manter no topo das corridas de resistênci­a até aos quarenta e qualquer coisa. Filipe tem 32 anos e uma certeza: “Há sempre um miúdo de 20 ou 22 anos que vai lá estar mortinho para acabar comigo. Eu sei bem o que é isso, eu já fui esse miúdo. Lembro-me bem de sentir isso, do meu sonho ser ‘dar um segundo a este gajo’, e eu gostava muito dele. Agora já sou um alvo a abater. Tenho estado sempre nos lugares de topo, nos últimos anos, na resistênci­a. Sei que quando o engenheiro me escolhe para fazer a qualificaç­ão é sempre um teste, mais uma prova. E a questão aqui é: quando é que eu vou começar a perder a rapidez?”

Toda esta conversa sobre corridas foi sendo interrompi­da por uma ou outra pausa para saborear e comentar o que íamos provando. Filipe Albuquerqu­e tem a típica vida de piloto. Passa mais de dois terços do ano fora de casa, a saltar de circuito em circuito. Este ano quer lutar pela vitória nos campeonato­s de resistênci­a na Europa e nos Estados Unidos e ainda ambiciona uma vitória nos LMP2 em Le Mans .Vive em Coimbra, onde nasceu, precisamen­te para poder aproveitar ao máximo o tempo em família, livre do stress. Já experiment­ou Lisboa, mas regressou a casa. É casado e tem uma filha com 2 anos. Pergunto se o nascimento da filha não teve efeito nos tempos por volta – há pilotos que assumem e sentem essa responsabi­lidade. “Não, nunca. Quando ponho o capacete e entro no carro, sinto-me como se voltasse a ter 7 anos, quando comecei nos karts.É o meu campo de visão, o volante e o que as mãos fazem. Esqueço tudo o resto e estou ali a divertir-me. Não penso. Chamem-me inconscien­te, mas… Penso mais assim: ‘se arriscar aqui posso bater, vamos perder tempo e isto não é o que precisamos para umas 24 horas. Este não é o momento para arriscar. Consigo calcular tudo para o resultado final. O meu pensamento está todo virado para aí. Nunca penso ‘vou atirar-me para ali, mas será que vale a pena, já tenho uma filha…’ Nunca, nunca.”

Filipe Albuquerqu­e fala depressa, gesticula e os olhos brilham quando começa a contar histórias da pista. Claramente não precisa de cafeína. De manhã, é o tal descafeina­do e neste almoço nem isso. Aquela questão da filha e da rapidez não faz sentido, sobretudo porque os carros de competição são agora muito mais seguros. “Hoje em dia somos mimados pela segurança. Os miúdos mais novos… Eu cheguei a ter umas batidelas fortes, quando era miúdo, tenho algumas marcas. Isso fezme ter algum respeito. Não como no tempo do Lamy, em que havia muita gente a morrer. Os miúdos de hoje em dia são uns inconscien­tes. Têm demasiada proteção. Nunca tiveram um acidente muito a sério e nunca se aleijaram para perceber que aquilo pode correr mal. O problema é que com os carros atuais parece não existir um meio-termo. Ou sais de um acidente meio abananado, vais para casa e recuperas numa semana, ou ficas em coma e acabas por morrer.”

Deixei para o fim da conversa a Fórmula 1. Um tema sensível para qualquer piloto português que algum dia tenha feito uma carreira internacio­nal séria. Filipe confessa que já fez as pazes com esse passado e com o sonho. “Quando era mais novo, fiquei revoltado, sim. Assinei um contrato com a Red Bull aos 18 anos e isso ainda me fez acreditar. Uma pessoa não tem bem a perceção da vida, e pensava: ‘eu sei que isto é inatingíve­l para mim, a Fórmula 1, mas assinei isto e diz lá F1, no contrato.’ Fez-me sonhar e acreditar que o mundo era bonito e justo. Depois, quando lá cheguei, atingi todos os objetivos que eles impuseram – fui o melhor estreante em todos os campeonato­s onde entrei e ganhei quando não era rookie, não podiam ter pedido mais –, mas na última fase, quando eles já me queriam para a GP2 e para a F1, disseram que era preciso trazer apoios. Ainda tentámos, mas acabou por entrar outro que conseguiu o dinheiro. O problema da F1 é que há dinheiro a passar por cima de muito talento.”

Uma amargura que já passou, até porque é preciso saber relativiza­r as coisas. “Queria era ser piloto e hoje em dia vivo muito tranquilo com isso. As injustiças vão sempre existir. Eu só me posso preocupar com aquilo que consigo controlar. E depois há injustiças muito piores e muito mais sérias no mundo do que esta. Estou mais do que resolvido.”

O miúdo que começou a andar de kart com 7 anos no kartódromo da Batalha, numa brincadeir­a com o pai e o irmão mais velho, diz que está onde sempre quis estar. Diverte-se em pista, a competir, e isso é quanto lhe basta. “Estou numa fase em que já não tenho de provar nada a ninguém. Tenho de andar rápido, claro, porque há sempre um gajo qualquer a tentar tirar-me o lugar. Mas acho que já passei aquelas fases da pressão para provar que ando bem e para convencer patrocinad­ores. Estou aqui para me divertir. Paga-me as contas e faço disto a minha profissão, mas o essencial é que estou aqui para me divertir. E sei que se estiver a divertir-me, estou a andar rápido.”

SEA ME – PEIXARIA MODERNA

1 água com gás 1 água sem gás 1 couvert 1 sashimi kisetsu 1 nigiri sardinha assada 1 red dragon 1 tártaro de salmão 1 descafeína­do

TOTAL: 72,00 EUROS

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