Felipe VI e a consolidação da monarquia espanhola: afinal eles aprendem!
Ao contrário da versão romântica sobre os regimes monárquicos, a legitimidade formal do rei de Espanha advém da Constituição, plebiscitada em dezembro de 1978 (há que sempre recordar que não foi o caso em Portugal) por uma maioria de 92% dos votos expressos (com uma abstenção de 33%), e não da história ou dos direitos dinásticos. O texto constitucional é, aliás, muito claro. Primeiro, ao contrário da versão portuguesa, não há qualquer reserva formal sobre a forma de governo, pelo que, tecnicamente, o Parlamento espanhol pode proclamar a república se houver uma maioria constitucional para isso (em Portugal, o artigo 288.º da Constituição impede uma lei de revisão constitucional que altere a forma republicana de governo). Segundo, sendo verdade que o artigo 57 estabelece que a sucessão da coroa se faz pela família do rei Juan Carlos, em nenhum momento faz referência às leis dinásticas da Casa de Borbón, mas apenas aos termos da própria Constituição. Depreende-se, portanto, que a Constituição revogou os direitos dinásticos estabelecidos antes de 1978. Aliás, na ausência de sucessão direta do rei Juan Carlos, a Constituição diz que o novo monarca seria escolhido pelo Parlamento e não pela Casa de Borbón. E, terceiro, o artigo 61 deixa muito claro que o rei (e o príncipe das Astúrias) é proclamado perante o Parlamento, sendo, pois, investido no seu poder moderador pelas Cortes Gerais. Consequentemente, se as Cortes Gerais não agendarem a proclamação do novo monarca, não há novo monarca. O artigo 74 regula o funcionamento das Cortes Gerais (isto é, as sessões conjuntas do Congresso e do Senado), mas em nenhum momento obriga à proclamação do novo monarca.
Serve esta (longa) introdução para clarificar que a atual monarquia espanhola não é a velha monarquia dos Áustria e dos Borbón, mas uma instituição inventada por Franco em 1969 e adotada pela democracia em 1978. Desse ponto de vista, a sua legitimidade formal é eminentemente democrática, porque foi referendada pelos espanhóis em 1978 (podiam ter feito como os italianos ou os gregos e dizer não a esta solução), e provém das Cortes Gerais, que representam o voto livre do povo espanhol. Para mais, os partidos republicanos não estão proi- bidos (existem e com representação parlamentar). Fundamentalmente, no dia em que exista uma maioria parlamentar republicana nas Cortes Gerais, com capacidade para emendar a Constituição, apenas tem de alterar o seu título II. Contudo, como o mecanismo de revisão constitucional espanhol é francamente mais complexo do que o português (porque exige acordo das duas câmaras parlamentares e referendo), os republicanos têm vários mecanismos legais com maioria simples – não proclamar o novo monarca, não aprovar a abdicação do monarca anterior, não promulgar o financiamento da Casa Real (ao abrigo do artigo 65, por exemplo).
Percebe-se, pois, que, se a legitimidade formal do rei tem origem na Constituição democraticamente referendada, então a legitimidade política do rei depende da opinião pública. E, nessa perspetiva, não há grande diferença entre o rei espanhol e o Presidente da República portuguesa. Um e outro procuram no povo a confiança que lhes garante a capacidade política para exercer a sua magistratura de influência. O Presidente português trabalha para a sua reeleição no seu primeiro mandato (já no segundo, não se percebe bem porque o padrão tem variado – há muito que defendo que deveríamos ter mandato único em Belém). O rei trabalha para a proclamação do seu sucessor, garantindo a continuidade da Casa de Borbón. Ambos são objetivos perfeitamente democráticos, cheios de afetos e potencialmente populares.
Diz-se que o rei Juan Carlos garantiu a sua sucessão no dia 23 de fevereiro de 1981 (23F). Pressionado a escolher entre a direita mais conservadora e as restantes forças políticas, hesitou umas horas, mas acabou por aderir à maioria democrática. Parece fácil e óbvio hoje, quase 40 anos depois, mas não foi. Isso significou um corte do rei com as forças sociais que lhe eram mais fiéis, incluindo os militares, que eram o seu grupo social e profissional. Em contrapartida, ganhou o respeito da esquerda (quase toda republicana) e o direito a reinar. A monarquia “juancarlista” foi o produto do 23F. E, graças ao “juancarlismo”, FelipeVI pôde suceder sem tumultos (por exemplo, a lei orgânica da abdicação foi aprovada por 299 deputados, 19 contra e 23 abstenções), quando o rei Juan Carlos esgotou a paciência dos espanhóis em 2014.
O rei FelipeVI encontrou agora a sua legitimidade política no conflito da Catalunha. Ao contrário de alguma opinião publicada em Portugal, o rei negou-se a ser mediador, porque fez uma opção política consciente e absolutamente racional. Arriscou, porque não se sabia naquele momento que o movimento independentista catalão ia mesmo cair no ridículo em que se encontra (nem governo consegue formar). Mas, ao optar pelo discurso que fez, FelipeVI foi o rei da esmagadora maioria dos espanhóis, que não toleram a independência da Catalunha. E foi o rei da metade catalã que não quer a independência. Com a sua atitude decidida, o rei FelipeVI não só assegurou o seu reinado como garantiu a sua sucessão. Assim como o rei Juan Carlos condecorou o seu filho com o Tosão de Ouro logo em maio de 1981 (apenas uns meses depois do 23F), agora o rei FelipeVI condecorou a sua filha. Por isso, a imposição do Tosão de Ouro à princesa Leonor há umas semanas não foi um mero entretém, como li na imprensa portuguesa. Mas um sinal político interno muito claro: o primeiro e supremo objetivo do rei é assegurar que Leonor reinará quando o seu tempo chegar. Desta vez, os Borbón aprenderam a lição do passado – no momento decisivo, escolhe-se sempre o lado mais forte da opinião pública. E assim se legitima a monarquia no século XXI.