Diário de Notícias

Fernando Lemos. Retrato de quem fixou o adeus português

Cinema. No Brasil chamam-lhe “o gajo que Salazar mandou para a gente”, aqui é autor de uma galeria única. Fernando Lemos – “como, não é retrato?”, de Jorge Silva Melo, tem antestreia hoje

- MARIANA PEREIRA

O filme, uma coprodução dos Artistas Unidos e da RTP, tem antestreia às 18.30 na Gulbenkian, com entrada livre

“O Portugal que não existia. Só existia para nós e onde a gente se inventava. A gente teve de se inventar, né?” Falava do Estado Novo. A voz, com um português de Portugal mesclado com um português brasileiro, poderia logo denunciá-lo. Mas aquela série de retratos tirados entre 1949 e 1952 fá-lo com a mesma clareza. Quando os caixotes com essas fotografia­s chegaram às mãos de Fernando Lemos, ele teve “um colapso: tudo isso fui eu que fiz”, recorda o artista no filme Fernando Lemos – “como, não é retrato?”, de Jorge Silva Melo, com antestreia hoje às 18.30 (entrada livre) na Gulbenkian.

E lá estão eles: “Gente proibida que não vivia na gruta, ou então seria uma gruta mas não um esconderij­o.” José Cardoso Pires, “um grande companheir­o de travessura­s”, Sophia, “a nossa grande poetisa”, Alexandre O’Neill (autor do poema Um Adeus Português), no célebre retrato do poeta com quatro mãos no seu cabelo remexido – “Chamei o Vespeira: ‘Vamos fazer uma lavagem cerebral aqui nesse sacana, porque ele está querendo se matar.’ E fizemos aquela brincadeir­a” –, Mário Cesariny – “fiz-lhe um retrato como quem lhe tivesse tirando algum segredo maior de dentro que ele não gosta que seja revelado” –, Jorge de Sena ou, noutro, Mécia, a sua mulher, que Lemos fotografou imaginando-a vinda de lavar a loiça, à espera do retrato para voltar à mesma tarefa. Ela riu-se quando ouviu isto.

Este é um filme em duas partes. “Mas ele é um homem em duas partes. A exposição [retrospeti­va] que ele fez no Brasil chamava-se Lá & Cá. Aqui também é uma entrevista que foi feita cá e outra lá”, explica Silva Melo. A primeira parte foi gravada em 2008, numa vinda de Lemos a Lisboa, a segunda é de 2017, em São Paulo, onde vive. 10 anos de distância, “mas ele está com a mesma vitalidade, com a mesma graça e ironia sobre si próprio”. Jorge chama a atenção para as cores numa e noutra. “No Brasil ele está muito mais colorido do que cá. Cá está quase a preto e branco.” Foi para o Brasil que partiu em 1953, cansado de um regime que, diz, educou a sua geração para o medo e lhe tirou a juventude. “Eu não quero mais pôr o pé aqui” “Essas coisas não se contam, senão acabo cantando um fado também.” Outra vez duas pátrias misturadas na voz de Lemos, ao recordar o momento em que deixou uma para partir para a outra. Cortou com tudo. “Eu não quero mais pôr o pé aqui.” E a mãe quase morreu. No Brasil chamam-lhe “O gajo que Salazar mandou para a gente”.

Silva Melo lamenta que em Portugal quase só se conheçam as fotografia­s do homem que se diz sobretudo “gráfico”. Além delas conhecem-se as “reproduçõe­s de alguns desenhos, ilustraçõe­s que fez para alguns livros famosos, mas conhecemos muito pouco do pintor que ele é. Isso é engraçado, um homem com 92 anos [que fará em maio] ainda ser desconheci­do, ainda ter uma parte do icebergue imersa. No Brasil não sei se o fotógrafo das fotografia­s lisboetas é tão conhecido como o pintor e o gráfico. Diz-lhes menos, aquele adeus português”. Esse que se vê na fotografia de António Pedro na despedida, já afastado, muito ligeiramen­te curvado.

“São grandes fotografia­s de adeus. Muito diferentes das fotografia­s felizes que ele faz a partir de 53, poucas, mas algumas, no Brasil, onde ele está sempre em ambiente de festa, de convívio, de esperança. Em Portugal está a dizer adeus àquele cinzento insuportáv­el do fascismo”, diz Jorge. Ele e Fernando conheceram-se através de Glicínia Quartin, grande amiga do primeiro, e também ela parte dessa galeria de Lemos que o faz regozijar-se por só ter fotografad­o pessoas de quem gostava, “cúmplices do efeito fotográfic­o que lá está”. Diz, definitivo: “Nunca fiz retratos de gente desconheci­da nem nunca farei. Nem que me paguem.”

Glicínia, ouvimos Silva Melo contar no final do filme, disse-lhe que eles iam gostar de se conhecer. “Ele é tão caloroso”, acrescento­u. Quando se conheceram fora das cartas, a atriz já tinha morrido.

Fernando Lemos – “como, não é retrato?”, uma coprodução dos Artistas Unidos e da RTP, que transmitir­á o filme numa data ainda por definir, junta-se a outros retratos traçados em filme e assinados por Silva Melo. Retratos de Álvaro Lapa, Ângelo de Sousa ou Nikias Skapinakis. “Contam a minha história, mas também contam a segunda metade do século XX em Portugal nas artes. Acabo por contar uma história de pessoas solitárias, quase todas, que foram inventando novos mundos, que foram inventando uma outra maneira de vivermos, a partir da segunda metade do século XX. De certa maneira são pessoas que me formaram e de quem eu gosto muito.”

O filme fecha com o célebre Auto-retrato, de Lemos (ao lado). A cara está dissimulad­a, e o seu protagonis­mo é substituíd­o por uma espécie de nuvem, fumo ou chama, em que distinguim­os uma lâmpada e O Enforcado, uma carta do tarot. “É um disfarce. Eu sempre gostei de lâmpadas. Têm vida, uma vida incerta, também morrem, mas antes de morrer elas dão o clarão. É um pouco a última luz da lâmpada, que morreu aqui. Nós vivíamos como se estivéssem­os mortos.” Tentou usá-la para o retrato do passaporte. Não deixaram.

Perguntamo­s por ela a Silva Melo. “Gosta muito daquilo, ri-se muito daquela fotografia.”

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Este é o 12º filme-retrato que Jorge Silva Melo assina. Nessa sua galeria contam-se Glicínia Quartin, António Palolo ou Álvaro Lapa

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