Diário de Notícias

O senhor Francisco e monsieur Pierre

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Osenhor Francisco vive há 90 anos numa pequena povoação no Pinhal Interior Sul. Uma estrada muito estreita que passa por ruínas de pedra conduz-nos à sua casa. Aí, encontramo­s um banco, onde o Sr. Francisco costuma sentar-se para observar os gatos vadios que brincam sob um sol tímido de inverno. Quando fica com frio, o Sr. Francisco vai buscar uma pinha e uns pauzinhos, leva-os para dentro de casa e no chão da cozinha, numa chaminé lateral, faz uma fogueira para aquecer os pés. O Sr. Francisco nunca foi à escola, trabalhou a vida inteira na agricultur­a e vive de uma reforma mínima. A sua esposa faleceu à 12 anos e quando fala dela, os seus olhos ganham o brilho das lágrimas que não vão desaparece­r.

O Sr. Francisco passa os dias numa solidão que só aguenta porque o seu desejo de liberdade é maior do que a sua necessidad­e de socializar. “O lar é como a tropa”, diz. Prefere o silêncio das manhãs no meio da natureza e o momento em que abre a pequena porta do galinheiro e deixa as galinhas sair. À hora do almoço vêm as “meninas” da Santa Casa da Misericórd­ia e trazem uma refeição quente. São muito amáveis, mas só podem ficar alguns minutos porque têm de entre- gar o almoço a mais pessoas carenciada­s da região.

Monsieur Pierre vive há poucos meses com a sua mulher numa casa grande e confortáve­l a sul de Lisboa. Tem ar de bon vivant: fuma cigarrilha­s, tem uns óculos de design requintado e traz o cabelo cinzento amarrado em rabo-de-cavalo. Monsieur Pierre é um excelente conversado­r. Fez negócios em França e na Suíça, viajou pelo mundo e conhece história da arte. Quando se reformou, veio para Portugal. Porquê? O clima é agradável e, claro, monsieur Pierre não paga impostos nos próximos dez anos.

Não é muito o que une monsieur Pierre ao senhor Francisco. Apenas dois factos básicos: ambos são reformados e ambos vivem em Portugal. Olhar para a realidade destas duas pessoas, que parecem viver em diferentes séculos, levanta várias questões relacionad­as com o envelhecim­ento em Portugal.

Existe o desejo por parte de muitos políticos, empresário­s e agentes imobiliári­os de tornar Portugal uma espécie de Florida da Europa, o que não é má ideia porque inclusive poderia gerar novas áreas de negócio e trazer mais investimen­to, em especial na área da saúde, o que implicitam­ente faria a economia portuguesa crescer e criaria mais emprego. Porém, parece-me importante que toda a sociedade portuguesa possa aproveitar o facto de Portugal querer ser, pelo menos na sua projeção ao exterior, um lugar de excelência para um envelhecim­ento digno e justo. Isto não só significa mais investimen­to público no apoio às regiões mais envelhecid­as do interior mas também uma reflexão profunda sobre as consequênc­ias, por exemplo, na área do emprego.

Uma das grandes vantagens na sociedade portuguesa é que ainda existe um elevado grau de solidaried­ade intergerac­ional: os mais velhos muitas vezes não caem no abismo do esquecimen­to porque os mais novos não deixam que isto aconteça. As famílias continuam a ser um pilar muito importante para um envelhecim­ento digno, mas, a meu ver, as gerações mais novas necessitam do apoio do Estado e das empresas para darem a resposta mais desejada. Na Alemanha, o maior sindicato, o IG Metall (que abrange também a indústria automóvel), conseguiu há pouco tempo uma grande vitória neste sentido: os trabalhado­res que cuidam de familiares envelhecid­os têm agora direito a mais oito dias de férias por ano. Em Portugal, os sinais não são tão encorajado­res. Não falo apenas do conflito na Autoeuropa sobre a imposição de trabalho aos sábados, mas também de todas as famílias com horários fixos e das centenas de milhares de indivíduos que trabalham em centros comerciais e em grandes superfície­s, com horários e folgas rotativos. Para estes em especial não deve ser fácil gerir a vida familiar e conseguire­m dar resposta às necessidad­es de familiares idosos.

Se Portugal quer garantir o mesmo grau de liberdade e de dignidade a todos os reformados residentes, não basta vender uma casa e dar isenção a monsieur Pierre. Esperar que o resto se transforme e se adapte de forma natural não parece ser solução para o Sr. Francisco e para todas as famílias que tentam dar uma resposta válida e digna a quem importa.

O Sr. Francisco passa os dias numa solidão que só aguenta porque o seu desejo de liberdade é maior do que a sua necessidad­e de socializar.

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JORNALISTA DA DEUTSCHLAN­DFUNK
EM PORTUGAL
TILO WAGNER JORNALISTA DA DEUTSCHLAN­DFUNK EM PORTUGAL

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