O Brasil na encruzilhada liberal
Aordem internacional liberal está sob ataque. O compromisso com 70 anos do Ocidente com a segurança comum, os mercados abertos e a democratização está a desfazer-se, e o mundo está a avançar rapidamente de uma ordem mundial unipolar para uma multipolar. Essa mudança terá consequências dramáticas e potencialmente perigosas.
Muitos países latino-americanos que se beneficiaram da ordem liberal, particularmente o Brasil, parecem indiferentes ao seu possível desaparecimento. Para entender o porquê, é preciso revisitar a criação do pós-1945 pelos EUA e os seus aliados europeus.
Os arquitetos da ordem liberal global construíram uma teia de acordos internacionais, acordos comerciais e alianças militares para alcançar três objetivos básicos: promoção do comércio aberto, prevenção de guerras catastróficas e desencorajamento do nacionalismo económico, substituindo um acordo centenário de soma zero com um quadro de soma positiva segundo o qual todos os países participantes poderiam prosperar.
A ordem que estabeleceram assenta num conjunto de regras e instituições como as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (agora Organização Mundial do Comércio), a NATO e o G20. Embora não estejam isentas de críticas, essas entidades tiveram grande sucesso na realização dos principais objetivos da ordem liberal.
Embora algumas instituições do pós-guerra excluíssem a América Latina, entre os anos 1950 e 1980, os governos da região participaram nelas a contragosto. Incomodava-os o design centralizado nos EUA da ordem liberal, mas toleraram-no desde que as suas regras não violassem abertamente a soberania nacional.
Esta postura não era surpreendente. O envolvimento da América Latina na política de poder global era comparativamente limitado, e os seus líderes tratavam o desenvolvimento económico como um assunto interno. Eles estavam também preocupados em resistir às intrusões estrangeiras por parte das antigas potências coloniais, em particular dos EUA.
O intervencionismo dos EUA – incluindo as tentativas de golpe de Estado apoiadas pela CIA na Guatemala (1954), Cuba (1961), Brasil (1964), República Dominicana (1965), Chile (1973), Nicarágua (1982), Granada (1983) e Panamá (1989) – reforçou re- gularmente essas preocupações. Como resultado, embora a maioria dos países da região (com notáveis exceções) tenha alinhado com o Ocidente durante a Guerra Fria, eles nunca abraçaram completamente a ordem global liderada pelos EUA.
Os latino-americanos também sentiram um profundo receio das políticas de consenso de Washington nas décadas de 1980 e 1990, que muitas vezes foram mal implementadas e exigiram uma “terapia de choque” sob a forma de estabilização macroeconómica, desregulamentação generalizada e privatização. Ao mesmo tempo, o crescimento espetacular da Ásia, particularmente da China, começou a mudar o centro da gravidade para longe dos EUA e da Europa.
Enquanto Cuba e os chamados países bolivarianos montaram campanhas agressivas antiamericanas, o resto da América Latina começou a traçar um rumo mais autónomo em relação à ordem global na década de 1990. Isso envolveu um frenético processo de construção de alianças regionais para promover interesses coletivos. Muitos desses esforços nasceram fracos e lutaram muito para amadurecer.
Ainda assim, após a sua fundação em 1991, o Mercosul, o rebelde bloco comercial sul-americano, conseguiu aliviar as tensões entre a Argentina e o Brasil, o que levou a multiplicar por dez o comércio bilateral. E em 2011, o Chile, a Colômbia, o México e o Peru estabeleceram a mais liberal Aliança do Pacífico, sublinhando a sua estratégia coletiva para a Ásia.
Mas, além desses sucessos desiguais, a região permanece enfraquecida pela desconfiança, mal integrada e incapaz de um crescimento sustentado. Não é de admirar que a sua posição no cenário global permaneça marginal.
O Brasil, pelo seu lado, alternou entre apoiar e criticar a ordem liberal. Durante mais de meio século, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil resmungou – não sem alguma justificação – devido à exclusão do país dos níveis superiores das instituições internacionais, em especial do Conselho de Segurança da ONU.
Como outros na região, o Brasil resistiu à influência dos EUA, mas, no entanto, jogou segundo as regras do jogo. Isso mudou um pouco durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva entre 2003 e 2010, que defendeu mais cooperação “Sul-Sul”. O Brasil também procurou acordos de energia, armas e infraestruturas com regimes iliberais, fazendo erguer sobrolhos nos EUA e na Europa.
Depois de um período de crescimento, a economia brasileira entrou em colapso com a sucessora de Lula, a ex-presidente Dilma Rousseff, cuja “nova matriz económica” envolveu políticas disruptivas, intervencionistas e protecionistas. Durante os anos de Rousseff, a taxa de crescimento do Brasil foi 2,6% menor do que a média regional latino-americana, levando a uma perda de disciplina fiscal, a uma reversão de ganhos de desenvolvimento e a um crescente descontentamento popular.
Mesmo assim, as instituições democráticas do Brasil demonstraram uma resiliência considerável. Apesar de seis anos de declínio económico e escândalos explosivos de corrupção, o país tem uma imprensa livre e um poderoso sistema judicial independente, o que pode trazer mudanças políticas e culturais que o país há muito espera.
Com o regresso a uma formulação de políticas mais equilibrada e transparente, o Brasil poderia contribuir construtivamente, mais uma vez, para o estabelecimento de uma ordem liberal internacional mais inclusiva e representativa. Afinal, como uma das maiores democracias do mundo e um firme defensor do multilateralismo, o Brasil tem mais em comum com defensores da ordem liberal do que com a China, a Rússia ou a Turquia.
Além disso, as elites do Brasil são menos isoladas e hostis à globalização do que no passado, e aceitam cada vez mais que as posturas protecionistas são contraproducentes. E a crescente classe média do país, cujos membros têm saído para a rua desde 2013, já não tolerará o aumento do custo de vida, os serviços públicos medíocres, a captura do Estado e a corrupção desenfreada.
Se os procuradores públicos do Brasil conseguirem sustentar a campanha de combate à corrupção Lava Jato, o Brasil também terá a oportunidade de virar a página do seu modelo de desenvolvimento falido após as eleições gerais em outubro. Para conseguir isso, os brasileiros precisarão de eleger um presidente com uma agenda de reformas progressista, não um populista de direita como Jair Bolsonaro.
Para o melhor e para o pior, o Brasil e o resto da América Latina estão essencialmente ligados à ordem internacional liberal e às suas instituições políticas e económicas. Ninguém na região deve desejar um regresso à desordem pré-1940. E o chamado consenso Pequim-Moscovo, construído como está com base em motivos estritamente económicos, não seria menos ruinoso.
O Brasil agora tem uma enorme oportunidade não apenas para remodelar a sua política e a sua economia, mas também para desempenhar um papel ativo na construção de uma ordem internacional liberal adequada a um mundo multipolar em constante evolução. A questão é se os brasileiros saberão aproveitar o momento.