Oiçam Trump a não falar no fuzil AR-15
Acrónica AVersão dos Afogados, além de ter dado o título coletivo a uma recolha de textos do Luis Fernando Verissimo, é uma lição sobre a necessidade da teimosia. Não fiques só por aí, ouve outras versões. Ficar por aí, naquela crónica, é engolir como universal o que contam alguns sobreviventes de naufrágios. O barco virou, afundou, encalhou ou explodiu, o que interessa é que o nadador caiu à água, o colete salva-vidas escorregou, as braçadas já esmoreciam, aconteceu o primeiro gole de uma onda, o quase desmaio, o fim inevitável...
Mas surge o golfinho (boto, nas palavras do brasileiro Verissimo), super-homem aquático e generoso, que cutuca o desfalecido em vias de ser só falecido, o empurra para a praia, deposita-o na areia... Por vezes até há uma testemunha, velhinha a falar para as câmaras: “Eu vi ele trazer...” E ela aponta onde o nosso cetáceo partiu sem cobrar agradecimentos. A câmara foca o ilusório rasto no mar e acredita. E nós também.
Essa é a versão que virou lenda – os botos são os melhores amigos do náufrago. Nada como problemas de consciência – exploramos o nosso primo mamífero no SeaWorld San Diego – para aceitarmos como regra única o que tem, talvez, outros prismas por onde olhar. Mas Luis Fernando Verissimo, em jeito de quem conta fiéis atropelados nas bermas das estradas a caminho de Fátima, para descontá-los nos milagres oficiais, convocou a versão dos afogados.
É que, sabe-se, nem todos os náufragos são salvos e levados até à praia. Alguns morrem mesmo. Não seria de tentar conhecer se, também aí, os golfinhos fizeram alguma coisa? O problema é que há náufragos que nunca dão à praia e alguns, dando, chegam já mortos e sem poder contar-se. Verissimo põe outra hipótese, terrível: não haverá botos que, ao invés de salvar, empurram os náufragos para o largo, quando não, pior!, os puxam para o fundo?
É a terrível versão dos afogados. Nunca ouvida, mas versão plausível apesar de nunca terem sido recolhidas provas sobre os malefícios dos golfinhos naquelas circunstâncias. Como atitude académica é a mais correta, eu adoto-a sempre, à desconfiança. Ainda ontem eu estava a ler um artigo da revista científica Proceedings of the Royal Society sobre as formigas Megaponera analis e segui esse princípio da desconfiança (já agora, leitor, seja desconfiado também e suspeite que eu li foi a vulgarização que o jornal Le Monde fez do assunto).
Então, pesquisadores da Universidade deWurtzburgo, na Ba- viera, descobriram que membros daquela família de formigas adotaram estratégias de socorro para salvar combatentes feridas que participaram num ataque a térmitas. Num vídeo, os cientistas mostram como elas ajudam uma camarada ferida, que é transportada no dorso de outra. Pela primeira vez este mecanismo foi observado em invertebrados. Desconfiei: a formiga armada em condutor de ambulância se calhar leva-a para a comer. Isso de carregar comida já se conhece há muito nas formigas...
Mas o vídeo prossegue e mostra outra descoberta dos pesquisadores alemães. Chegadas ao ninho, as Megaponera analis organizam um hospital onde as formigas enfermeiras tratam as feridas com saliva antibacteriana, que evita as infeções. O estudo garante que 80% das antigas combatentes salvam-se. A desconfiança acicata-me outra vez: quem me diz que não é show-off das inteligentes formigas ao saberem que estão a ser estudadas em Wurtzburgo? Mais, porque não são as estatísticas manipuladas, como acontece sempre em sociedades civilizadas como parecem ser as das formigas?
Eu espero que o leitor não veja nestas minhas desconfianças uma qualquer má vontade em relação à Megaponera analis, embora as suas guerras predisponham a colocar-me mais do lado das térmitas (as formigas salalé da minha infância). O que quero é, perante um assunto contado de certa forma, trazer à baila outras versões possíveis. E aproveitando-me da atualidade, o tiroteio numa escola da Florida, 17 mortos, lá trago mais umas declarações de Donald Trump.
Logo na manhã seguinte ao morticínio, Trump fez este tweet: “Tantos sinais de que o atirador da Florida era um desequilibrado mental, já expulso da escola por razões de mau e errático comportamento. Os vizinhos e os seus colegas de aula sabiam que ele representava um grande problema. É preciso denunciá-los às autoridades, uma vez e outra e outra.” Horas depois, nova intervenção de Trump: “Se têm necessidade de ajuda, falem com um membro da vossa família, com um professor, com um agente da autoridade ou um responsável religioso.” Portanto, a versão presidencial é: o assassino era um maluco e não foi denunciado suficientemente.
Provavelmente, lá estou eu com as minhas desconfianças, por vezes até tolas. Mas arrisco-me a dar outra versão, outra forma de ver a coisa, talvez sem ter nada que ver com o assunto. Mas lá vai a minha versão. A versão AR-15. Rifle de assalto, semiautomático. Levezinho, três quilos. Disparo simples ou intermitente triplo ou disparos contínuos, uma simples patilha decide. Cartuchos de alta velocidade de pequeno calibre para permitir o matador transportar mais munições. Para quê grossos calibres quando o efeito conta-se um a um (nesta semana, até 17)? Basta calibre levezinho para furar os ossos do crânio de um garoto.
Pergunta: como é que um garoto de 19 anos consegue esconder que é um desequilibrado quando entra numa loja e compra um AR-15 e todas as munições que quer? Pode esconder, pode, porque a maluquice dele está inserida no desequilíbrio geral.
Oiçam o Trump a não falar no fuzil AR-15.
Portanto, a versão presidencial é: o assassino era um maluco e não foi denunciado suficientemente