O momento em que saímos do coro e assumimos a nossa voz
Tónan Quinto encena a Oresteia, de Ésquilo, a trilogia que mostra como os homens se afastaram progressivamente dos deuses e assumiram, com a criação do tribunal, a responsabilidade pelos seus atos. Uma reflexão sobre o individual e o coletivo – que é ass
Existe um momento em que é preciso decidir. E assumir a responsabilidade. Existe um momento em que percebemos que aquilo que decidimos individualmente foi influenciado pelo contexto em que nos encontramos e que a decisão terá, por sua vez, influência nos outros. É o momento em que sentimos que somos parte de um todo maior. Mas essa consciência não anula nem desculpa aquilo que fazemos. Pelo contrário.
É essa tomada consciência que é contada na Oresteia, a trilogia trágica escrita por Ésquilo que foi representada pela primeira vez nas Dionísias de Atenas, em 458 a.C. E que Tónan Quito coloca em cena a partir de hoje no palco no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Na primeira peça, Agamémnon, assistimos ao regresso da guerra de Troia do herói grego. Mas Agamémnon é assassinado pela mulher, Clitemnestra, que assim se vinga pelo facto de o marido ter sacrificado a filha deles, Efigénia, oferecida aos deuses em troca de vento para fazer que os barcos chegassem a Troia. Seguem-se as Coéforas, onde se conta como Orestes, também filho de Agamémnon e Clitemnestra, vinga a morte do pai matando a mãe e o seu amante, Egisto. Mas logo é atacado pelas Eríneas, deusas do remorso, e, não suportando a culpa, enlouquece. Finalmente, nas Euménides, a deusa Atena propõe a criação de um tribunal, composto por homens, que irá julgar Orestes, interrompendo assim a cadeia de vingança.
“Este tribunal foi a causa de eu querer fazer a peça”, explica Tónan Quito. Ésquilo retrata aquele momento em que os homens começam a ganhar autonomia em relação aos deuses. “São homens com meia vontade, são meio marionetas ainda.” Por um lado, sabem que existe um destino e não há como lhe fugir – aí estão os deuses, como Cassandra, a prever os seus futu- ros atos. Por outro lado, os homens sentem uma responsabilidade por esses atos, sentem culpa. Já há uma vontade. Esse passo é dado aqui. “Temos de decidir como é que nos organizamos. Eu como indivíduo decido as coisas da minha vida. Mas na sociedade temos de tomar decisões em conjunto. E, nesse sentido, esta peça é muito atual, faz-nos pensar no modo como nós vivemos, hoje em dia. Vivemos em sociedade, no teatro trabalhamos em grupo. A todos os momentos, estamos a tomar decisões, que implicam no coletivo.”
Essa luta entre o individual e o coletivo é assumida no palco de várias maneiras, a começar logo na forma como, enquanto os espectadores entram na sala, os intérpretes começam a pintar a cara com argila, acabando por ficar praticamente irreconhecíveis. Essa evocação da máscara usada pelos gregos, continua, com outro tipo de máscaras nas duas peças seguintes. “A máscara retira a identidade do ator, não vamos ao teatro ver os atores, vamos ver a peça, a máscara é a anulação do indivíduo”, explica o encenador.
E daí facilmente chegou à conclusão de que todos os intérpretes teriam de fazer o coro. “O coro somos todos, na sociedade. O coletivo. E nós aqui assumimos o coletivo. E, depois, cada um de nós sai do coletivo para ir fazer a sua personagem, para ir cumprir a sua função” – na peça e na sociedade.
Esta abordagem levanta um outro problema quanto à interpretação: “Qualquer tipo de emocionalidade que seja excessiva fica mal. Ou é selvagem mesmo, uma coisa muito histriónica, quase catártica. Ou então tem de ser só na base do contar, qualquer tipo de perspetiva psicológica e emocional, não dá.” Tarefa complicada para os intérpretes – Cláudia Gaiolas, Francisco Camacho, Isabel Abreu, Miguel Borges, Tónan Quito, Vera Mantero e ainda os dois músicos dos Dead Combo. “A linha que tentamos seguir, não sendo histriónica e não sendo intelectualizante, baseia-se nesta questão: qual é a minha vontade como indivíduo? E saímos do coro para isso. Mas as personagens não são completamente desenhadas. É quase como se houvesse um traço grosso. Como se cada personagem tivesse uma energia própria e apenas isso.”
Numa peça onde nada acontece à nossa frente, todas as ações são contadas, a dramaturgia de Miguel Castro Caldas procura preservar o essencial da narrativa e da poética originais tornando o texto legível para intérpretes e espectadores num espetáculo de duas horas e meia. Para isso muito contribui a música original dos Dead Combo, interpretada ao vivo, criando, com as vozes do atores, uma cadência, uma vibração, que nos conduz, ou nos impele, de um acontecimento a outro, até ao final. “Muitas vezes vai haver dificuldade em perceber, mas há qualquer coisa na tragédia que é incontrolável. O Orestes diz: sinto que estou a conduzir um carro cujos cavalos saem da pista. E a tragédia é isso.”