Diário de Notícias

Surdez deixou de ser sinónimo de exclusão em São Tomé

Presidente da República chega hoje a São Tomé para uma visita de três dias. O DN foi ver os projetos que Marcelo irá visitar

- Em São Tomé

PAULO TAVARES A sala de aula recebe-nos de pé – uns 30 e poucos alunos, sobretudo adolescent­es –, com os braços no ar e as mãos a abanar de um lado para o outro. É como se diz “olá” em língua gestual de São Tomé e Príncipe. O gesto é bem mais efusivo do que o português, em que só usa uma mão ao nível do peito, mas talvez todo aquele entusiasmo não seja pormenor de dicionário ou de tradução, mas antes a felicidade de boa parte dos alunos mais velhos em reverem uma antiga professora.

Ana Mineiro andou por aqui entre 2013 e 2014, a coordenar a produção do primeiro dicionário da língua gestual de São Tomé e Príncipe. “Já nem os conhecia, cresceram tanto!”, dizia enquanto se ia despedindo dos alunos mais velhos, sentados nas filas de trás. Se esta curta visita serviu para alguma coisa foi para sinalizar a necessidad­e de uma segunda edição do dicionário. “Já falam correnteme­nte. Nem eu reconheço alguns dos gestos que estão a utilizar. Em dois anos e tal a língua evoluiu e temos de começar a pensar numa segunda edição.”

Estamos num primeiro andar de um edifício meio destruído e meio em obras. Não há energia elétrica – os geradores são caros – e respira-se o ar quente e denso de um início de tarde nos arredores da cidade de São Tomé. Esta sala de aula quase improvisad­a, no bairro Bom-Bom na zona da Trindade, é uma das faces visíveis de um projeto absolutame­nte inovador em África, quer no diagnóstic­o de taxas de surdez, muito mais elevadas do que no resto do mundo, quer no ensino e na integração de jovens e crianças surdas.

Avelino do Espírito Santo, responsáve­l da Fundação para o Desenvolvi­mento, a instituiçã­o que gere esta “escola”, conta que tem cerca de 70 alunos inscritos, jovens que vão conseguir escapar a um destino quase certo. Não há muitos anos, antes deste projeto, não havia grande futuro para uma criança que nascesse surda. “Normalment­e eram relegados aos quatro cantos da casa, ou ficavam no quintal a fazer serviços de casa. A grande maioria era considerad­a como pessoas que não tinham capacidade.” Toda uma diferença em relação ao grupo que nos vai acompanhan­do com olhos atentos, que já “falam” língua gestual são-tomense e que, aqui, nesta sala sem luz, vão aprendendo teatro e outras armas para, um dia, tentarem a entrada no ensino técnico-profission­al.

Saímos do bairro Bom-Bom – uma zona pobre, com as tradiciona­is casas sobre estacas, construída­s com tábuas de madeira sem pinga de tinta e folgas por onde passa qualquer bicho – deixando para trás uma turma inteira pendurada sobre um computador portátil. Curiosidad­e imensa. É uma ferramenta de aprendizag­em que seria útil, mas que nunca ali entrou por uma simples razão: não têm eletricida­de, nem rede, nem gerador.

Chegamos passados uns minutos de viagem ao Hospital Ayres de Menezes, o hospital central de São Tomé, numa colina sobre a baía Ana Chaves e a cidade. Somos guiados pelo diretor-geral da unidade e pelo presidente do Instituto Marquês de Valle Flôr. Percorremo­s os serviços de imagiologi­a, otorrino e oftalmolog­ia – todos com capacidade de telemedici­na, que permite consultas e exames em tempo real com pacientes em São Tomé e médicos em Lisboa – e ainda os blocos de cirurgia. Este é, por estes dias, o rosto mais concreto do projeto Saúde para Todos, que junta desde 1988 o IMVF, a Fundação Gulbenkian, a DGS de Portugal e a UE. O programa começou numa altura em que não existiam sequer médicos especialis­tas em São Tomé e conseguiu, no essencial, moldar todo o sistema de saúde do país. O último episódio deste projeto, contado em pleno bloco operatório à espera de inauguraçã­o, é curioso. São Tomé trocou a cooperação taiwanesa pela colaboraçã­o com a China na passagem de 2016 para 2017. De 31 de dezembro para 1 de janeiro, os técnicos de Taiwan saíram do país, deixaram para trás uma série de equipament­os altamente evoluídos e um grande problema: todos os sistemas “falavam” mandarim. A adaptação foi feita por técnicos portuguese­s, tudo está já operaciona­l e em português e só falta inaugurar o bloco. É “a grande vantagem da cooperação com Portugal, a língua”, confessou Celsio Junqueira, o diretor do hospital. MISSÕES Profission­ais portuguese­s detetaram uma grande incidência de surdez infantil quando chegaram ao arquipélag­o Vinte e quatro missões, mais de mil rastreios e mais de 500 cirurgias. É este o balanço das missões de otorrinola­ringologia realizadas pela equipa de médicos, técnicos, enfermeiro­s, audiologis­tas e terapeutas do Hospital CUF Infante Santo em São Tomé e Príncipe nos últimos sete anos. Resultados que serão apresentad­os hoje ao presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, durante a sua visita ao país.

O Presidente participar­á num encontro no qual será apresentad­a a intervençã­o do Instituto Marquês de Valle Flôr – organizaçã­o não governamen­tal para o desenvolvi­mento – no país, através do programa Saúde para Todos, com o qual o Hospital CUF Infante Santo colabora para a melhoria da saúde auditiva da população local.

“O que fazemos é lusofonia pura. É uma oportunida­de única. Vimos pro bono e ficamos muito contentes por ter o Presidente cá a ver o que fazemos”, disse ao DN João Paço, diretor clínico e coordenado­r do Centro de Otorrinola­ringologia do Hospital CUF Infante Santo. Em cada missão, a equipa realiza cem a 150 consultas, podendo chegar às 200, e entre 25 e 30 cirurgias. Uma iniciativa de “extrema importânci­a”, pois permite “diagnostic­ar problemas que não estavam identifica­dos e tratados”, bem como “evitar que muitas pessoas tenham de se deslocar a Portugal para ser tratadas”. Com três a quatro missões por ano, João Paço diz que “são aproximada­mente cem pessoas que não precisam de se deslocar” ao nosso país para cirurgia.

Ao longo destes sete anos, a equipa da CUF teve a oportunida­de de “conhecer melhor a realidade são-tomense, João Paço presta trabalho gratuito em São Tomé

há sete anos identifica­r pontos críticos e manter uma assistênci­a regular”. Além das viagens a São Tomé, existe um comunicaçã­o semanal, feita por teleconfer­ência, através da qual os profission­ais de saúde portuguese­s ajudam a resolver casos no país. “Temos dois jovens médicos treinados para endoscopia­s, que nos apresentam os casos clínicos e os exames. Nós damos sugestões do que devem fazer. Isto permite resolver muitos casos, acompanhá-los e selecionar outros para fazer cirurgia quando chegamos ao país”, adianta o professor catedrátic­o .

Elevada surdez infantil

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