Da Zarzuela a Belém: a questão monárquica no tempo dos afetos
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A questão monárquica em Portugal ficou encerrada em 1951 (infelizmente, do meu ponto de vista) quando, após a morte do Presidente Carmona, Salazar inviabilizou a restauração da Casa de Bragança e insistiu na forma republicana de governo (com a eleição do Presidente Craveiro Lopes, em julho de 1951). Durante uns meses (Carmona faleceu em abril de 1951), os monárquicos sonharam com a possibilidade de uma solução dentro do Estado Novo que abrisse caminho a uma mudança de forma de governo, mesmo que fosse no modelo espanhol (a ley de sucesión en la jefatura del Estado de 1947 configurou Espanha como um reino, mas com Franco como chefe de Estado vitalício, uma espécie de regência até ao novo monarca) ou no modelo húngaro (aprovado em 1920, estabelecia o almirante Horthy curiosamente, residente no Estoril desde 1950 até à sua morte, em 1957, como regente do reino da Hungria, enquanto não havia acordo com os Aliados sobre a identidade do monarca, situação que formalmente se manteve até 1946). Podemos afirmar hoje, quase 70 depois, que os monárquicos portugueses perderam aí a sua última chance histórica. Não só a Constituição impõe desde 1976 que a forma republicana de governo é um limite material a qualquer revisão constitucional futura, como até hoje nunca houve qualquer pressão para retirar esse limite do artigo 288.º CRP. O único partido que se diz monárquico tem uma representatividade eleitoral mínima (apenas 15 mil votos em 2015). E os monárquicos que possam existir nos vários partidos políticos com representação parlamentar (e seguramente existem) pouca influência exercem, pois nunca o PS, o PSD ou CDS tentaram seriamente alterar o tal artigo 288.º CRP, muito menos referendar a forma de governo.
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A monarquia parece um anacronismo histórico hoje. Trivialmente, diz-se que é pouco democrática. Mas não é. Como sugeri no artigo da semana passada, falando da monarquia espanhola, ela é uma instituição profundamente democrática. O regime monárquico espanhol não é qualquer relíquia do passado, mas uma instituição referendada em 1978 (apoiada com 92% dos votos expressos, ao contrário dos italianos e dos gregos, que mandaram as suas casas reais para o exílio no final das suas ditaduras, ou do Brasil, onde apenas 13% votaram pela forma monárquica de governo no referendo de 1993), que depende exclusivamente de legislação aprovada nas Cortes Gerais (tanto o Congresso como o Senado são democraticamente eleitos), que evidentemente revoga quaisquer direitos dinásticos históricos (neste caso, da Casa de Borbón), que não beneficia de qualquer limite material que impeça a sua eliminação pelo poder constituinte e que se legitima na opinião pública, como qualquer instituição de natureza republicana (dei os exemplos do rei Juan Carlos I com o 23F e do rei Felipe VI com a crise catalã).
Paradoxalmente, é por ser democrática que a monarquia espanhola (e qualquer outra monarquia que emirja de uma Constituição democrática) não tem uma das vantagens institucionais que os monárquicos citam habitualmente – o poder moderador do rei é muito mais eficaz porque não depende de ciclos eleitorais ou das agendas sectaristas dos partidos políticos. Acontece que o rei, numa monarquia democrática, tem uma enorme restrição: garantir que a sucessão real se faz pela sua família. E como essa sucessão depende da boa vontade dos partidos políticos e da opinião pública, o monarca é como um presidente da República eternamente no seu primeiro mandato, não a pensar na reeleição como em Portugal, mas a pensar na continuidade da sua dinastia. Por isso, o rei democrático, sim, depende de ciclos eleitorais, dos partidos políticos e da sociedade. Não está acima da política porque a sua sucessão (ou abdicação) é necessariamente parte da política.
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Se a questão da sucessão numa monarquia democrática explica o comportamento da Zarzuela nas várias crises espanholas (23F, abdicação em 2014, crise da Catalunha), como referi na semana passada, penso que há igualmente lições para Belém. Também partilho da opinião que um presidente será tão mais eficaz na sua magistratura de influência quanto menos depender de ciclos eleitorais e dos interesses partidários conjunturais. Desse ponto de vista, penso que a reeleição do presidente é uma perturbação constante que constrange o poder moderador. Todos os presidentes tiveram um comportamento político radicalmente diferente no primeiro mandato (genericamente amigo dos partidos maioritários, com vista a construir uma maioria presidencial para a reeleição) e no segundo mandato (com uma lógica de maior choque com os partidos, principalmente do “outro” lado político). Na verdade, talvez o mais surpreendente seja constatar que no segundo mandato os presidentes estiveram menos preocupados com o seu legado, como é hábito nos Estados Unidos (talvez um pouco o Presidente Soares, pois desde cedo, no segundo mandato, se preocupou com a sua Fundação), e mais com as guerras partidárias (Eanes e a fundação do PRD, Soares e as forças de bloqueio, Sampaio contra Santana no final de 2004, Cavaco contra Sócrates logo em 2011 e Costa em 2015).
Parece-me claramente mais apropriado um mandato único de sete ou oito anos. Retira a pressão do ciclo eleitoral. Introduz um período logo em que o presidente provavelmente coexistirá com várias maiorias parlamentares sem estar pendente delas. Oferece uma estabilidade institucional sem necessidade de um primeiro mandato popularucho, fugindo das decisões polémicas, para favorecer artificialmente uma maioria presidencial (num cargo com uma intervenção muito limitada na execução das políticas públicas). E poupa o país a reeleições com fraca participação eleitoral que, mais tarde ou mais cedo, serão fonte de problemas de legitimidade política (abstenção foi 38% em 1991, 50% em 2001, 53% em 2011, chegará aos 60% em 2021?).