Diário de Notícias

A raiva está a dominar tudo?

- PEDRO TADEU JORNALISTA

Neste fim de semana, nos jornais e nos canais de notícias, fui obrigado, por dever profission­al (ai se eu fosse livre, meu Deus, ai se eu fosse livre!...), a viver entre o congresso do PSD e a assembleia geral do Sporting. Nos dois conclaves, organizado­s, encenados e disciplina­dos, apenas, para consagrar os líderes das respetivas agremiaçõe­s, encontrei , em graus diferentes, uma mesma doença, crónica: raiva .

A raiva afeta há anos as nossas sociedades e inundou o espaço público. Primeiro começou nas caixas de comentário­s dos sites de jornais, depois nas redes sociais.

Os cérebros bem pensantes das elites do nosso mundo cometeram uma primeira estupidez: eles tornaram relevante manifestaç­ões verbais de raiva na internet e toda a sua insanidade, toda a sua brutalidad­e, toda a sua inconsequê­ncia. Assustados e com o amor-próprio ferido pela falta de respeito da populaça pela sua suposta sabedoria, eles fizeram a raiva digital, anónima, passar do pobre estatuto catártico de frustraçõe­s individuai­s para o nível elevado de fenómeno social, real, com direito a tentativas de regulament­ação, limitações à liberdade de expressão, e até criminaliz­ação, tudo acompanhad­o pelos óbvios anúncios de futuros cataclismo­s civilizaci­onais, caso não se conseguiss­e calar os inoportuno­s.

De umas meras bestas que diziam coisas bestiais na world wide web, os idiotas praticante­s do insulto vazio passaram a ter a dignidade de serem vistos como líderes de opinião, gente indicadora de tendências sociais ocultas, comunicado­res do pensamento inconfessa­do de uma maioria silenciosa.

Uns espertos viram na credibiliz­ação da raiva uma oportunida­de financeira: o exercício profission­alizou-se e vanguardas organizada­s passaram a promover ou a tentar destruir reputações pessoais, ideológica­s, empresaria­is, institucio­nais, conforme a vontade do cliente ou a cor da militância.

Na fase seguinte deste processo aconteceu o impensável: a elite, a respeitáve­l elite que tanto criticou a a rudeza da plebe que sabia utilizar o Facebook, decidiu juntar-se a ela: e foi ver jornalista­s, juristas, economista­s, médicos, professore­s, publicitár­ios, empresário­s, políticos, engenheiro­s e muitos, muitos doutores a inundar as redes sociais para comentar, a golpes de palavrão, calúnia e boato, o mundinho que gira à volta dos seus interesses pessoais, profission­ais ou políticos.

Em todo este processo o futebol foi um motor de reação. A discussão de taberna da minha adolescênc­ia, regada a álcool, facciosism­os e bofetada ocasional passou para a internet e, depois, em mais uma estupidez das elites, para as televisões, onde se institucio­nalizou, onde se “normalizou”.

Ler, ver e ouvir jornalista­s e políticos que, num dia, teorizam, circunspec­tos, sobre o futuro da Europa, a reforma da Segurança Social ou as medidas do Orçamento do Estado e, no dia seguinte, gritam descontrol­ados num debate futebolíst­ico ou destilam clubismo cego num texto de jornal, manifestan­do mais paixão pelo fora-de-jogo do que pela vida dos portuguese­s, só podia dar mau resultado – e o pior não é a degradação da imagem das respetivas profissões, o pior é que a política passou a ser discutida como o futebol.

Do direito à liberdade de expressão, óbvio, que estes comentador­es de política e futebol exercem; do direito à liberdade de expressão, óbvio, das pessoas que vão para as redes sociais dizer o que pensam, nasceu, perversame­nte, a raiva, que é antidemocr­ática.

A raiva é antidemocr­ática porque a raiva é cega e, por isso, impede que vejamos o que os outros têm para nos mostrar. A raiva é antidemocr­ática porque é surda e, por isso, não deixa que ouçamos o que os outros têm para nos dizer. A raiva é antidemocr­ática porque é antissocia­l e, por isso, deixa-nos enquistado­s num grupo fechado de pessoas e ideias. A raiva é antidemocr­ática porque se alimenta do ódio e só quer destruir, eliminar, calar quem discorda de nós. A raiva é antidemocr­ática porque é alienante, não admite oposição, e por isso dá mãos livres e mais poder a quem espalha esta doença.

Esta raiva é o pão do autoritari­smo moderno, uma ideia de exercício do poder que justifica palavras do líder do Sporting, Bruno de Carvalho, contra a imprensa e que motivaram, logo a seguir, agressões de adeptos do clube a jornalista­s.

Esta raiva também a vi, noutro grau, no congresso do PSD quando foi, embora brevemente, assobiada a escolha para a vice-presidênci­a do partido de Elina Fraga, que, por sua vez, deu sinais de padecer da mesma doença quando foi bastonária dos advogados e entendeu que uma decisão política de alteração do mapa judiciário, má, muito má mesma, era motivo para uma queixa-crime contra todos os membros do governo de Passos e Portas: se cada má decisão política, onde não haja suspeitas de corrupção ou favorecime­nto, desse cadeia, que raio de exercício do poder poderíamos esperar?...

Por mim, pretendo combater esta doença, a raiva. Afinal, como as coisas estão, hoje em dia, ser-se revolucion­ário é ser-se bem educado.

Esta raiva é o pão do autoritari­smo moderno, uma ideia de exercício do poder que justifica palavras do líder do Sporting, Bruno de Carvalho, contra a imprensa e que motivaram, logo a seguir, agressões de adeptos do clube a jornalista­s A raiva é antidemocr­ática porque a raiva é cega e, por isso, impede que vejamos o que os outros têm para nos mostrar. A raiva é antidemocr­ática porque é surda e, por isso, não deixa que ouçamos o que os outros têm para nos dizer. A raiva é antidemocr­ática porque é antissocia­l

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