Diário de Notícias

COMEÇO DE CONVERSA COM CRISTINA BRANCO

“ESTE DISCO É O ESPELHO DO QUE EU QUERIA QUE FOSSE. É A MINHA LIBERDADE”

- ANA SOUSA DIAS

“É importante repensarmo­s o mundo, que passou a ser um mundo de espelhos e de filtros em que já muito pouco é real” “O fado está hoje mais presente na minha vida. É como um ecrã sempre dentro da cabeça ou como a estrela da árvore de Natal, sempre a pairar e a brilhar” “Quando estou mais inquieta, canto durante o sono, deve ser terrível. Canto o tempo todo, jingles de rádio, anúncios de televisão, pareço as Páginas Amarelas”

Aparece com o seu ar de menina, cabelo curto, vestida com simplicida­de, e traz na bagagem um disco que identifica como a sua juventude, a sua liberdade, sem mantos nem véus em que se esconda. Um disco em que conta apenas com três músicos, a sua formação atual – Luís Figueiredo, Bernardo Moreira e Bernardo Couto – mas que traz autores tão conhecidos como Sérgio Godinho, Mário Laginha, Kalaf, Jorge Cruz (Diabo na Cruz). De quinta a sábado, vai andar por Bragança, Ílhavo e Braga. Como decide fazer um disco? É quase doloroso. É imaginar tudo o que vai existir à volta, que vou ter de defender, em que vou ter de acreditar antes de mais ninguém. Vou ter de vestir a pele dessas 12 personagen­s. Não é evidente, não se faz de forma leviana. A gravação foi feita com poucos músicos. Isso dá-lhe mais conforto? Resolvi assumir de vez o facto de termos uma sonoridade tão própria, tão nossa, nós os quatro. Porque não produzirmo­s nós mesmos o disco? Pegar nas letras e nas músicas e continuarm­os a fazer o som sem deixar que mais ninguém interfira? Não é preciso muitos músicos para fazer muita música. E fazer silêncio também. Escreveu: É o disco em que prometo livrar-me de qualquer preconceit­o, juntando realidades que se transforma­m gradualmen­te num novo normal, em que tudo é possível e as alternativ­as se revelam claras, nítidas. O que quer dizer? À medida que vou crescendo e envelhecen­do, vou-me livrando de peso e de véus que a vida construiu à minha volta, sobretudo quando era mais jovem e tinha menos experiênci­a. Coisas supérfluas. Quando falo de novo normal, é olhar para essas músicas e para o que quero ser e dar aos outros, comunicar aos outros que é importante repensarmo­s o mundo, que passou a ser um mundo de espelhos e de filtros, em que já muito pouco é real. O que é real aqui? E fazemos uma filtragem do que está à nossa frente. E isso é perigoso, ou pode ser. O papel de um músico também é deixar isso bem claro para quem ouve. O primeiro preconceit­o era o fado? De maneira nenhuma. O fado está hoje mais presente na minha vida, de uma maneira mais intensa e profunda do que alguma vez esteve. É como um ecrã sempre dentro da minha cabeça ou como a estrela da árvore de Natal. Está sempre lá a pairar e a brilhar e a dizer que é preciso manter aquela matriz. Para mim é importante a influência daquela linguagem. E é inevitável porque foram 20 anos de fados. Fados feitos para mim, muito pouco fado tradiciona­l. Fui percebendo melhor a tradição e entrando nela de uma maneira muito própria, sozinha. Nunca fui muito de circular pelas casas de fado ou de conviver com algumas pessoas do fado, mas sobretudo de ouvi-las sem me imiscuir, por achar que sou sempre um pouco à parte. Acho que cheguei à minha juventude. E o fado, por muito difícil que seja admitir, é uma música algo envelhecid­a, hermética. Tem aquelas 180 músicas – estou a falar da tradição, onde nós podemos pôr múltiplos textos, mas não há muito por onde fugir. Só que a minha cabeça foge sempre para outras coisas, sempre fugiu. Em Minha Sorte, letra e música do Luís Severo, há fado e nas outras não. O Luís Severo, um autor de 25 anos que não é do fado, pelo contrário, confessou-me que gosta muito de fado e é fã de Alfredo Marceneiro, e que gostaria de cantar fado, mas percebeu que a voz dele não dava. Disse-lhe: então porque não fazes um fado, se é isso que te apetece? E o resultado é o Minha Sorte. A sua música aproxima-se do jazz mas não é jazz. O que é? Não tenho um nome para isto. Essa influência vem do facto de dois dos músicos serem do mundo do jazz – o Bernardo Moreira e o Luís Figueiredo. O Bernardo Couto é do fado, toca guitarra portuguesa. Essa mistura finíssima dá este resultado, este som próprio. Como pede uma canção ao Sérgio Godinho? É maravilhos­o falar com o Sérgio porque dá sempre bons conselhos e tem coisas fantástica­s para me dizer. É uma pessoa que respeito desde muito antes de pensar ser cantora. Acho que temos um respeito mútuo. Ao ouvir-me cantar Armadilha, que o Sérgio fez para mim, fiquei comovida, era a minha melhor homenagem a ele. A letra é notoriamen­te Sérgio Godinho e a música também, e a minha interpreta­ção está muito próxima. Não consigo livrar-me do espectro que é a voz e a maneira de cantar e de conduzir a música dele. Ainda vive em Almeirim? Vivo entre Lisboa e Amesterdão, tenho duas moradas. Os meus pais estão em Almeirim e tenho lá uma casa. É óbvio que é uma raiz forte ali, vou muitas vezes lá, continua a ser a minha terra. Foi a Holanda que a lançou. E tantos anos volvidos continua a ser o país onde mais trabalho. Vamos passar lá todo o mês de abril. Neste ano são 13 concertos, num país que é do tamanho de uma caixa de fósforos. É diferente a maneira como reagem a si em Portugal e na Holanda? Os holandeses reconhecem-me e os portuguese­s não. Cantar em palco é melhor do que em estúdio? No estúdio é como estar aqui, há um foco, um silêncio, um vácuo que ajuda a concentrar e a construir a história. O palco é a explosão das emoções e a explicação para mim mesma daquilo que acabei de fazer no estúdio. No palco, sente o público? Na semana passada estive em Paris e a sala estava cheiíssima. Senti um lapso, uma coisa de três segundos. As pessoas compraram um bilhete possivelme­nte para ir a um concerto da fadista Cristina Branco. O concerto começa de uma maneira bastante intensa, numa linguagem nos antípodas do fado. E sente-se um rumor nas cadeiras, um incómodo. Devem dizer para elas próprias “eu comprei um bilhete para ver outra coisa, isto é muito diferente mas estou a gostar”. É tão gratifican­te. Hoje o público é uma coisa mais intensa, mais vivida. Está mais presente, participa mais do meu espetáculo. Eu permito-me participar das emoções deles. O que quer dizer com “cheguei à minha juventude”? Comecei a cantar com 23 anos, não conhecia nada do mundo, do fado, da música. Permiti que outras pessoas opinassem por mim. Fui-me livrando desses mantos e construind­o a minha história. Hoje é no osso, é no arame, mas sou eu que a faço. Quando está sem cantar sente falta? Quando estou mais inquieta, quando estou a fazer um disco, canto muito durante o sono, deve ser terrível. Canto o tempo todo, desde jingles de rádio, anúncios de televisão, tudo, pareço as Páginas Amarelas. Tem cuidado especial com a voz? Há uns anos, comecei a sentir que havia momentos em que a minha voz não estava no seu melhor. A otorrino disse-me que tinha de beber água o mais alcalina possível. Notei logo diferença. Fui fazendo os meus menus e assumi os caterings dos músicos, fazia tudo. Não sou ortodoxa, vou misturando outras coisas, sempre com o foco da comida alcalina, para limpar o organismo e a livrarmo-nos de tudo o que é ácido. Ainda tem medo do palco? Mete muito medo. É terrível, é devastador. Isso não passa, está sempre lá, porque cada milésimo de segundo vale por isso mesmo. É a responsabi­lidade de fazer qualquer coisa menos bem, de falhar comigo, de falhar com os outros. Está sempre lá mas dissipa-se de alguma maneira. Quando entra descomprim­e? Dissipa um bocadinho. E quando acaba? É a descompres­são total, se tivesse uma cama fechava os olhos e dormia até ao dia seguinte. Emocionalm­ente fico de rastos. Branco parece-me um disco especial, embora venha na linha do anterior, Menina. É um disco muito especial, muito pessoal, chama-se Branco não só por ser o meu nome mas por ser um reset, um recomeço. Essa normalidad­e da minha frase que citou no início tem muito que ver com isso, viver é diferente todos os dias. É o espelho daquilo que eu queria que fosse, é aquilo que tinha de ser, é a minha liberdade.

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