Reinvenção do Correntes d’Escritas já acontece na 19.ª edição do festival
O colombiano Juan Gabriel Vásquez foi o vencedor do grande prémio literário do encontro que reúne mais de 80 escritores na Póvoa de Varzim e que ontem começou com Ignácio de Loyola Brandão em palco numa viagem literária
Ainda não tinham passado quatro horas sobre o desafio lançado pelo autarca da Póvoa de Varzim, Aires Pereira, para a renovação do festival literário e já um entre os 80 escritores ibero-americanos convidados para a 19.ª edição do Correntes d’Escritas estava a responder ao apelo da reinvenção com um espetáculo em que reunia literatura, biografia e música, no palco do Teatro Garrett. Era ele o escritor Ignácio de Loyola Brandão, que durante duas horas seduziu as várias centenas de pessoas que esgotam a lotação da principal sala onde decorre o evento, deixando todos curiosos sobre o que se seguirá até sábado.
Começou por fazer a conferência de abertura e seguiu com um espetáculo em que interpretou textos seus com a filha cantora Rita Gullo e o guitarrista Edson Alves. Em ambas as situações utilizou a profissão da escrita e a história da sua longa vida de 80 anos, começando por recordar o que a professora da primária lhe ensinou na primeira aula e a dificuldade em perceber o significado de uma palavra nova: desocultamento. “Recebi a primeira lição de escritor nesse dia”, disse, que através deste início avançou na crítica da situação política no Brasil perante uma plateia sempre atenta, usando a palavra “desocultamento” como a necessidade de se perceber o que está por trás de muitas situações da vida. Brandão recordou também a primeira vez que ouviu a palavra “erótico” a propósito de uma redação que a professora se recusou a ler para os outros alunos, mas a que deu a nota máxima. Tal como o aviso de que “no futuro tens de ter cuidado com o que escreves porque nem todos o vão aceitar”, numa nova referência à realidade política atual do Brasil. “Nunca tenha medo, arrisque”, voltou a dizer a professora após outra redação, mensagem que o escritor brasileiro desejava deixar clara ontem na sua intervenção como sendo o papel de quem publica livros, insistindo que sempre foi contra a imposição de “uma moral que censura até em livros didáticos palavras que considera que não devem ser utilizadas”.
Socorrendo-se de muitas imagens da sua juventude, Brandão foi invocando vários nomes de artistas que protestam na arte que fazem: “O chinês Wei Wei, Fernanda Montenegro e Chico Buarque, entre outros.” Não deixou de referir o grande ausente, o escritor Luís Fernando Veríssimo: “Ele tem recebido ameaças, como outros escritores brasileiros, por parte de quem quer construir novos muros após a queda do Muro de Berlim.” A meio do discurso, avisou que a pilha de folhas que tinha à sua frente era alta, mas apenas porque o papel era grosso e a letra grande. Mas ninguém se queixava da distância que Brandão percorria com as suas histórias de jovem, que tinham muito que ver com a atualidade. Decerto que abriu o apetite para o seu próximo romance, Serena Loucura, a sair no Brasil em maio e em Portugal em setembro, pela editora Teodolito. Ainda leu umas páginas desse novo livro, em que a palavra “desocultamento” reaparece para “explicar um Brasil do futuro com muitas das cores do presente”. Seguiu-se o espetáculo com uma banda que, “como ainda não tem nome, chamo-lhe pai, filha e espírito santo”, iniciando-se com Canção do Mar, de Amália: “Foi uma surpresa para quem nasceu e viveu muitos anos em Araraquara e nunca vira o mar antes dos 27 anos.” Prémio para Gabriel Vásquez A sessão de abertura oficial começou com o anúncio dos vários prémios literários que são entregues a escritores e a jovens. O prémio da Papelaria Locus foi para o trabalho Balaton de Ana Sousa e o do conto infantil para duas escolas da região. O prémio da Fundação Luís Rainha não foi atribuído por ausência de qualidade. A finalizar as decisões dos júris, estava o anúncio do Prémio Casino da Póvoa, que foi atribuído ao escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez pelo romance A Forma das Ruínas. O júri justificou a escolha devido “à admirável arquitetura narrativa inserida na atmosfera da história colombiana”, O autor não estava presente, mas foi anunciada a sua chegada a tempo de receber pessoalmente o prémio na sessão de encerramento. Era um entre os 14 livros a concurso, tendo a seleção sido bastante renhida, pois o romance Escola de Náufragos, de Jaime Rocha, obteve dois dos cinco votos do júri.
Entre os vários discursos da cerimónia ouviram-se o do ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, poeta que participa habitualmente no festival e que repetiu neste ano a presença na abertura do Correntes d’Escritas. O governante destacou o facto de a autarquia compreender a importância da cultura para o crescimento pessoal e ao mesmo tempo colaborar na dinamização económica, valorizando a presença das duas línguas ibéricas em todo o mundo, fenómeno que a nacionalidade do vencedor do prémio confirma. Recordou que muitos dos seus livros de poesia foram lançados na Póvoa e que os momentos de convívio entre autores ficaram sempre na sua memória. Um ambiente que a escritora Inês Pedrosa reafirmou após elogiar o crescimento constante deste festival literário e a sua valorização através do fortalecimento da literatura dos países representados no encontro. A finalizar, a coordenadora do festival, Manuela Ribeiro, leu uma mensagem do escritor Luís Fernando Veríssimo em que este justificava a sua ausência no festival por motivos de doença. O brasileiro lamentava não poder dizer que estava em espírito no Correntes porque “a alma não come bacalhau” e prometeu que para o ano não faltaria.