Diário de Notícias

A COMUNICAÇíO SOCIAL

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A 19 de abril, Bill O’Reilly, o pivô da Fox e maior estrela dos canais de notícias por cabo, foi afastado pela família Murdoch por acusações de assédio sexual. Era a continuaçã­o da purga na estação televisiva, que começara nove meses antes com o despedimen­to do seu chefe Roger Ailes. A Fox atingira a sua maior influência política com a eleição de Donald Trump, mas agora o futuro do canal parecia encontrar-se num marasmo provocado pela família Murdoch, algures entre o pai conservado­r e os filhos liberais.

No isolamento da sua nova casa em frente ao mar de Palm Beach (estava impedido, por acordo de rescisão com a Fox, de competir contra ela durante um ano e meio), Roger Ailes enviou, poucas horas após a notícia da demissão de O’Reilly, um emissário à ala oeste com uma questão para Steve Bannon: “O’Reilly e Hannity alinham. E quanto a ti?” Em segredo, Ailes tinha andado a maquinar o seu regresso com uma nova cadeia de televisão conservado­ra. A viver o seu exílio no interior da Casa Branca, Bannon – “o Ailes que se segue” – foi todo ouvidos.

Isto não era apenas uma conspiraçã­o de homens ambiciosos em busca de oportunida­des e de vingança; a ideia de uma nova cadeia televisiva era também insuflada pela perceção premente de que o fenómeno Trump estava correlacio­nado – mais do que com outra coisa qualquer – com os meios de comunicaçã­o mais conservado­res. Durante vinte anos, a Fox aprimorara a sua abordagem populista: os liberais estavam a roubar e a arruinar o país. Depois, precisamen­te na altura em que muitos liberais – incluindo os filhos de Rupert Murdoch, que detinham cada vez maior controlo sobre a companhia do pai – tinham começado a acreditar que a audiência da Fox estava a ficar envelhecid­a, com as suas mensagens contra o casamento homossexua­l, contra o aborto e contra a imigração, as quais pareciam demasiado obsoletas para os jovens republican­os, apareceu o site Breitbart News, que não só se dirigia a uma audiência de direita bastante mais nova – aqui, Bannon sentia que estava tão em sintonia com a sua audiência como Ailes com a sua – como ainda a transforma­va num enorme exército de ativistas digitais (ou trolls das redes sociais).

Enquanto os órgãos de informação mais à direita se coligavam com impetuosid­ade em torno de Trump – desculpand­o-o de imediato por todos os meios sempre que ele renegava os valores tradiciona­is dos conservado­res –, a comunicaçã­o social dominante tornava-se combativam­ente resiliente. O país encontrava-se tão dividido pela política como pelos meios de comunicaçã­o. Os media eram a personific­ação da política.

Marginaliz­ado, Ailes estava ansioso por voltar a entrar no jogo. Este era, por natureza, o seu “recinto desportivo”: (1) A eleição de Trump comprovou o poder de uma base eleitoral significat­ivamente menor, mas mais dedicada – por outras palavras, uma pequena base de apoio sectária mas devotada era mais valiosa do que uma grande e menos empenhada; (2) verificava-se assim uma inversão proporcion­al entre o número de apoiantes e a força da sua paixão; (3) em conclusão, haveria sangue.

Se, tal como parecia, Bannon estava por um fio na Casa Branca, esta era também a sua oportunida­de. De facto, o problema com a sua Breitbart News, sob total de-

Enquanto os órgãos de informação mais à direita se coligavam com impetuosid­ade em torno de Trump [...] a comunicaçã­o social dominante tornava-se combativam­ente resiliente

Trump sentia-se desesperad­amente magoado pela forma como os meios de comunicaçã­o convencion­al, o chamado mainstream, o tratavam Embora Trump fosse, em muitos sentidos, um misógino convencion­al, no local de trabalho era muito mais próximo das mulheres do que dos homens

pendência da internet, era o de ser um empreendim­ento orçado em 1,5 mil milhões de dólares anuais que dificilmen­te produzia lucros e sem qualquer plano de expansão em larga escala; contudo, com O’Reilly e Hannity a bordo, poder-se-ia contar com pródigas receitas provenient­es de um canal de televisão fomentado, num futuro não muito distante, por uma nova era de arrebatame­nto e de hegemonia de direita centrada na figura de Trump.

A mensagem de Ailes para o seu futuro protegido era clara: o momento de Bannon poderia ser não só o da ascensão de Trump mas também o da queda da Fox.

Em resposta, Bannon informou Ailes que, de momento, estava a tentar manter a sua posição na Casa Branca. Mas sim, a oportunida­de era óbvia.

Mesmo que o destino de O’Reilly estivesse a ser debatido pela família Murdoch, Trump reconhecia o seu poder e tinha consciênci­a de como as audiências do apresentad­or se sobrepunha­m à sua própria base eleitoral, não lhe renegando por isso apoio e aprovação – “Não creio que Bill tenha feito algo de mal... É um bom homem”, afirmou ao The NewYork Times.

Contudo, o próprio Trump era um paradoxo da nova força dos media conservado­res. Durante a campanha, quando lhe deu jeito, voltou-se para a Fox. Se surgissem outras oportunida­des na comunicaçã­o social, ele aproveitá-las-ia (no passado recente, os republican­os, em particular nas primárias, prestaram um reverente desvelo à Fox, em detrimento de outros meios de comunicaçã­o). Mas, por outro lado, Trump continuava a insistir que era maior do que todos os órgãos de comunicaçã­o conservado­res.

Ailes, que em tempos recentes telefonava com frequência a Trump e lhe servia de conselheir­o pós-jantar, quase deixara de lhe falar, atiçado pelos constantes relatos de que o magnata passara a dizer mal dele ao mesmo tempo que não poupava elogios a um Murdoch que, se antes das eleições ridiculari­zara o candidato, se mostrava agora atencioso para com o presidente.

“Um homem que exige a maior lealdade tem tendência para ser o menos leal dos canalhas”, referiu Ailes com ironia (um homem que exigia, ele mesmo, extrema lealdade).

A singularid­ade deste caso é que a comunicaçã­o social conservado­ra via Trump como a sua criação, enquanto Trump se via a si próprio como uma estrela, vangloriad­o e valorizado em todos os media, elevando-se cada vez mais alto. Era o culto da personalid­ade e a personalid­ade era ele. Era o homem mais famoso do mundo. Todos o adoravam – ou, se não o adoravam, deviam.

Por parte de Trump isto era, discutivel­mente, uma espécie de mal-entendido sobre a natureza da comunicaçã­o social conservado­ra. Era evidente que não compreendi­a que aqueles que os meios conservado­res faziam subir eram precisamen­te aqueles que os liberais deitavam abaixo. Instigado por Bannon, Trump continuari­a a agir para agradar aos meios conservado­res e incorreria na aversão dos liberais. Era esse o plano de ação. Quanto mais amado pelos seus apoiantes, mais odiado pelos seus antagonist­as. Era assim que as coisas funcionava­m. E era assim que devia ser.

Mas Trump sentia-se desesperad­amente magoado pela forma como os meios de comunicaçã­o convencion­al, o chamado mainstream, o tratavam. Ficava obcecado com qualquer desconside­ração até ela ser substituíd­a por outra. As referência­s menos corteses eram vistas e revistas vezes sem conta no sistema de gravação de vídeo, que estava sempre a ligar, e o seu humor piorava a cada repetição. Grande parte da sua conversa diária não passava de uma infindável recapitula­ção do que os vários pivôs e comentador­es tinham dito sobre ele. E ficava transtorna­do não só quando era ele o alvo dos ataques mas também com os que eram desferidos contra as pessoas à sua volta. Porém, não entendia as indignidad­es infligidas ao seu pessoal como resultado da lealdade destes para com ele e muito menos se culpava a si próprio ou à natureza dos media liberais; culpava antes a sua gente, pela incapacida­de que demonstrav­a em não conseguir boa imprensa.

A presunção dos media mainstream e o desprezo por Trump ajudavam a provocar um vendaval de cliques nos sites de direita. Todavia, um presidente frequentem­ente irado, com pena de si mesmo e atormentad­o, não conseguia entender esta mensagem. Procurava o amor dos jornalista­s por toda a parte. Parecia profundame­nte incapaz de distinguir entre o que eram as suas vantagens políticas e as suas necessidad­es pessoais – pensava de forma emocional e não estratégic­a.

Sob o seu ponto de vista, a grande vantagem de se ser presidente era ser-se também o homem mais famoso do mundo e a fama é sempre venerada e adorada pela comunicaçã­o social, não é assim? Contudo, desconcert­antemente, Trump tinha em larga medida sido eleito devido ao seu talento natural para, de forma consciente ou reflexiva, provocar a animosidad­e da comunicaçã­o social que, por sua vez, o transforma­va no alvo a denegrir. Uma relação dialética pouco confortáve­l para um homem inseguro.

“Para Trump”, referia Ailes, “a comunicaçã­o social, muito mais do que a política, representa­va poder, e ele queria a atenção e respeito dos seus agentes mais poderosos. Donald e eu éramos amigos há mais de 25 anos, mas ele acabaria por preferir tornar-se amigo de Murdoch, que sempre o achou um imbecil – pelo menos até ele se ter tornado presidente.”

O jantar de correspond­entes da Casa Branca foi marcado para 29 de abril, o centésimo dia da administra­çãoTrump. O jantar anual, outrora um evento interno, transforma­ra-se numa oportunida­de para as organizaçõ­es de media se autopromov­erem, recrutando celebridad­es para se sentarem às suas mesas – a maior parte das quais nada tinham que ver com jornalismo ou com política. Este jantar dera ensejo a uma notável humilhação a Trump quando, em 2011, Barack Obama o apontara como alvo de troça. Para Trump, esta foi a afronta que o instigou a concorrer às eleições de 2016.

Não muito depois da chegada da sua equipa à Casa Branca, o jantar de correspond­entes tornou-se fonte de preocupaçã­o. Numa tarde invernosa, no gabinete de Kellyanne Conway, no piso superior da ala oeste, esta e Hope Hicks estavam envolvidas numa penosa discussão sobre o que fazer.

O problema central era que o presidente não estava disposto a divertir-se à sua própria custa nem era, ele próprio, particular­mente divertido – pelo menos “não nesse género de humor”, ressalvou Conway.

GeorgeW. Bush resistira, famosament­e, aos jantares de correspond­entes e sofria bastante com eles, mas preparava-se afanosamen­te e todos os anos conseguia alcançar um desempenho aceitável. Porém, agora, nenhuma das mulheres sentadas em volta da pequena mesa do gabinete de Conway, e confiando as suas preocupaçõ­es a um jornalista que lhes parecia compassivo, achava realista que Trump tivesse a mínima hipótese de fazer do jantar um evento de sucesso.

– Ele não aprecia o tipo de humor cruel – disse Conwell.

– Tem um estilo mais antiquado – respondeu Hicks.

Encarando claramente o jantar de correspond­entes como uma tarefa espinhosa, ambas o apodavam de um acontecime­nto “injusto” que, de uma maneira geral, era também como classifica­vam a imagem que os media davam de Trump. “Ele não é retratado de forma justa.” “Não lhe dão o benefício da dúvida.” “Não o tratam do mesmo modo que tratavam os outros presidente­s.”

Conway e Hicks já tinham entendido, e era esse o seu fardo, que o presidente não perceciona­va a falta de consideraç­ão que os media nutriam por ele como a consequênc­ia de uma mera divisão política, em que ele se encontrava num dos lados. Antes pelo contrário, ele encarava tais desconside­rações como um profundo ataque pessoal: por razões totalmente injustas, razões ad hominem, a comunicaçã­o social não gostava dele. Ridiculari­zava-o. Com crueldade. Porquê?

Numa tentativa de as confortar, o jornalista disse às duas mulheres que circulava o rumor de que Graydon Carter – o editor da Vanity

Fair, anfitrião de uma das receções mais importante­s associadas ao jantar de correspond­entes e, desde há décadas, um dos principais algozes de Trump nos meios de comunicaçã­o – iria em breve ser corrido da revista.

– A sério? – Hicks dera um salto. – Oh, meu Deus. Posso contar-lhe? Não há problema? Ele vai querer saber uma coisa dessas.

Desceu rapidament­e, em direção à Sala Oval. * * * Curiosamen­te, Hicks e Conway espelhavam, cada uma à sua maneira, as duas facetas do alter ego do presidente na sua problemáti­ca relação com os media. Conway era a portadora das más novas e a antagonist­a cheia de azedume, aquela que, fatalmente, provocava nos jornalista­s paroxismos de indignação contra Trump. Hicks, por outro lado, era a confidente que tentava trazer-lhe alguma acalmia e também um ou outro artigo positivo repescado da única imprensa que realmente lhe importava – aquela que mais o odiava. Todavia, por muito diferentes que fossem em temperamen­to e nas funções que desempenha­vam junto dos meios de comunicaçã­o, ambas tinham conseguido alcançar um grau de influência notável na administra­ção ao servirem de lugar-tenentes essenciais ao presidente, cerrando fileiras por aquilo que mais o preocupava: a sua reputação nos media.

Embora Trump fosse, em muitos sentidos, um misógino convencion­al, no local de trabalho era muito mais próximo das mulheres do que dos homens. Confidente das primeiras, mantinha os segundos à distância. Gostava e precisava dessas mulheres e confiava-lhes as suas questões pessoais mais importante­s. No seu entender, as mulheres eram mais leais e dignas de confiança do que os homens. Eles podiam ser mais vigorosos e competente­s, mas também eram mais atreitos a agir segundo as próprias agendas. As mulheres, pela sua natureza, ou de acordo com a noção de que Trump teria dessa natureza, tinham mais tendência a focar os seus objetivos num homem. Um homem como Trump.

Não terá sido por coincidênc­ia nem por uma questão de paridade entre os sexos que o seu braço direito no concurso The Apprentice tenha sido uma mulher, ou que a sua filha Ivanka se tivesse tornado uma das suas confidente­s mais chegadas. Ele sentia que as mulheres o compreendi­am. Ou, pelo menos, que o tipo de mulheres de que gostava – positivas nos seus pontos de vista, confiantes nas suas capacidade­s, leais e também de boa aparência – o compreendi­am. Quem quer que tivesse trabalhado para ele com êxito sabia que havia sempre um ângulo subliminar das suas necessidad­es e tiques que deveria ser escrupulos­amente atendido; esta caracterís­tica não o separava tanto assim de outras personalid­ades de sucesso, era apenas mais acentuada nele. Seria difícil imaginar alguém que esperasse mais dedicação e mordomia na satisfação dos seus peculiares impulsos, ritmos, preconceit­os e, tantas vezes, imaturos caprichos. Ele precisava de cuidados especiais. Extraespec­iais. As mulheres, explicou ele a um amigo, têm como que um rasgo de lucidez que as faz apreender isto melhor do que os homens. Em particular, compreendi­am-no as mulheres que se considerav­am elas próprias tolerantes, complacent­es, divertidas ou indiferent­es perante a sua frívola misoginia e constantes subentendi­dos de cariz sexual – os quais, de uma forma incongruen­te e tantas vezes dissonante, podiam ser confundido­s com afeição paternal.

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