Luís Cília: “Os que ficaram no país eram os verdadeiros exilados”
O cantor e compositor Luís Cília continua dedicado à música, não a pisar os palcos com canções de intervenção mas a fazer temas para bailados e teatro. Aliás, há 50 anos estava exilado em Paris e participou como ator e compositor das músicas de uma peça de teatro de Jean-Pierre Chabrol, Ma Déchirure. Dois meses depois era envolvido na situação social explosiva provocada pelos protestos dos estudantes franceses, o Maio de 68. Cília abandonara Portugal quatro anos antes e chegara a Paris sem grandes posses, aceitando vários empregos para sobreviver – guarda-noturno, tradutor –, conhecendo entretanto políticos, poetas e músicos que lhe irão permitir desenvolver uma carreira dedicada à música. A amizade com a cantora Collete Magny encaminha-o para a famosa editora Chant du Monde, onde grava o disco Portugal-Angola: Chants de Lutte. Um disco que numa das revistas francesas especializadas teve uma crítica de página quase inteira, deixando numa caixa as referências aos novos discos de Joan Baez e de Pete Seeger.
Distante de Portugal, não acompanha o que José Afonso ou Adriano Correia de Oliveira faziam na área da música de intervenção, mas o seu disco chega ao país por via de portugueses que o trazem de forma clandestina. A carreira no estrangeiro é momentaneamente interrompida pelo regresso a Portugal a 30 de abril de 1974, no mesmo avião em que dezenas de portugueses exilados voltam em definitivo – entre eles Álvaro Cunhal –, mesmo que Cília ainda seja obrigado a regressar a França para cumprir vários contratos. Gravou diversos discos após a revolução, mas a sua personalidade fez que não alinhasse com os caminhos musicais e políticos de então e se resguardasse cada vez mais das aparições públicas. Georges Brassens e Léo Ferré são as referências que o levam para a música? Não, essa foi uma inflexão na minha vida. Eu cantava rock – devo ser o trisavô do rock! – em direto num programa na Rádio Renascença em 1960. Viera de Angola, onde vivi até aos 16 anos, e lá ouvia-se esse género de música: Elvis, Gene Vincent. Os Beatles nunca me influenciaram, era mais o rock da linha dura dos americanos, por isso até escrevia letras e canções em português. Em Paris, tudo mudou na perspetiva da música e o primeiro disco que gravei foi na Chant du Monde: 16 canções numa tarde, que hoje levaria três meses. É possível gravar 16 canções num dia? Tinha treinado bastante, mas houve uma canção – de que ainda hoje gosto –, um poema de António Borges Coelho, que fiz na véspera de entrar em estúdio. Era tudo muito espontâneo. Por exemplo, conheci o Manuel Alegre num café do Quartier Latin acabado de chegar a Paris e, de seguida, fomos para o quartinho onde eu vivia, num sétimo andar no Boulevard Sebastopol, onde ele ia dizendo os poemas e eu musicava. Canções que entraram nesse primeiro disco, das quais três foram gravadas pelo Adriano Correia de Oliveira. O rock foi substituído pela política? Comecei a frequentar a Casa dos Estudantes do Império, um antro muito politizado, onde ganhei consciência política e deixei de ser atrasado cultural. Depois, o escritor Alfredo Margarido apresentou-me ao poeta Daniel Filipe e este mostrou-me as primeiras canções de Brassens e do Ferré. Aí deixei a fase anterior. Em Paris, através do Paco Ibañez, fui apresentado ao Brassens e até foi ele o meu proponente na Sociedade de Autores. Ainda gosta desse primeiro disco? Conforme fui estudando música ia ficando mais difícil porque havia mais elaboração no compor. O primeiro disco está cheio de defeitos, até a guitarra está desafinada por vezes, mas tenho muito carinho pelo meu trabalho. E como foi o salto? Foi mesmo O Salto, porque o realizador Christian de Chalonge em 1967 fez um filme com esse título sobre a partida dos portugueses e a sua chegada a França. Aí fiz a primeira música para um filme e comecei a dedicar-me só à canção. Foram tempos de dificuldades porque cantávamos para três ou cinco pessoas, mas o disco ia sempre vendendo. Esse disco foi ouvido em Portugal? Por minorias que o traziam clandestinamente. Lembro-me do Manuel de Brito, da Galeria 111, o levar com uma outra capa para o esconder. Quem o ouvia era uma minoria politizada. Também era uma minoria que não ouvia José Afonso? Claro, mas ouvia-se mais abertamente. A diferença é que os que cá viviam faziam as letras com metáforas e eu chamava os bois pelos nomes e falava da Guerra Colonial. Podia falar mais abertamente, o que tornava a vida dos que viviam cá mais complicada. Porque decidiu exilar-se em Paris? Não queria fazer a guerra, nem participar dentro de certas estruturas como outros aceitaram. De qualquer maneira, decidira ir embora e não estou arrependido. Numa guerra, temos de tomar um partido. Os dez anos que passei em Paris ensinaram-me muito e não sou dos que vêm chorar o duro exílio, acho até que muitos dos que ficaram no país eram os verdadeiros exilados. Foi uma escola de vida e com muitos amigos: Brassens, Atahualpa Yupanqui, Ibañez, Viglietti, Moustaki... Em 1967, pedi asilo político e fui dos primeiros a ter o passaporte de exilado. Vi uma foto sua a tocar para Fidel Castro. Um dos mitos, como Che ou Mao, que foram apeados. Como os vê? Estive em Cuba em 1967 num encontro da canção de protesto e passei um mês inesquecível. Era um povo em construção e tenho sempre carinho por essa época. Podemos questionar porque os dirigentes se eternizam no poder, mas quando penso no Che e no Fidel são os homens da Sierra Maestra. Não sou o
mesmo homem que era em 1964 ou 1975, mas assumo cada etapa da vida. Como ter feito o Avante Camarada a pedido de um funcionário clandestino, o Carlos Antunes, porque era preciso uma música para passar na rádio. Fi-la, entreguei-a e não pensei mais nisso. Assumo o hino, mesmo não sendo membro do PCP desde 1981, e tenho prazer que ainda seja cantada. Veio no mesmo avião com Cunhal? Desconhecia que ele vinha e nem o conhecia pessoalmente. Como vivi em vários lados, não tinha a sensação de exílio como outros que regressavam a um país que se libertou. Porque volta a “exilar-se”? Não voltei, tinha contratos a cumprir enquanto músico. Regressámos no fim de 1974 definitivamente com as malas. Quando aterra, nota-se que fica fora do que disse ser “folclore” político. O Jorge de Sena teve uma frase emblemática para a altura: as pessoas vinham sacudir a árvore das patacas. Quiseram dar-me um bom lugar e disse que já chegava de tipos de esquerda incompetentes. Eu sou músico, se Portugal funcionar é o que serei aqui. Chocava-me a rivalidade sobre quem era mais revolucionário. Até dei uma entrevista em que considerei Alfredo Marceneiro um cantor revolucionário, foi a minha reação contra a história do fado ser fascista. Acho que revolucionário é tudo aquilo que nos torna melhores, não é rimar patrão com pão ou revolução. Até uma canção de amor é revolucionária. Sentiu vontade de voltar ao exílio? Senti-me muito exilado em Portugal quando voltei porque era um clima de intolerância política total a que não estava habituado. Mas também não reencontraria a Paris que eu vivi. A discriminação que se via no filme A Gaiola Dourada não é verdade? Vi um bocado e é mais uma caricatura. Eu cantava todas as semanas à borla numa associação de portugueses e a maior parte das mulheres eram porteiras. Era forma de ter alojamento sem pagar. A política tomou conta da sua obra durante muito tempo. Como a vê agora? Nos discos havia sempre poemas com um fundo político revolucionário porque me preocupava em exprimir politicamente os anseios de muitos portugueses que viviam em França. A música de intervenção ficou sem espaço ao longo dos anos? É pena, porque há muito para protestar. As formas de protesto é que devem ser diferentes. Não temos a Guerra Colonial ou a PIDE, mas existem grandes desigualdades na sociedade e nos EUA continua a haver racismo. Porque deixou de editar discos? Deixei de fazer discos porque até certa altura havia confiança entre o artista e a editora. Tinha um disco preparado; dizia à editora, reservavam o estúdio e só o conheciam quando estava pronto. A partir de um certo momento, as grandes editoras tinham um menino que queriam ouvir antes e pronunciar-se sobre se aquilo iria vender ou não. Prefiro não gravar ao sabor da opinião de alguém pouco interessado na qualidade e sim nas vendas. Como viu a vitória de Salvador Sobral? É uma música boa e bem feita, uma pedrada no charco porque mostrou à Eurovisão que se pode fazer diferente. Qual foi o último disco que gravou? Não sei bem, talvez o Penumbra, com poesia do David Mourão-Ferreira. E não quer continuar? Não sei. Todas as semanas tenho pedidos para arranjar discos meus e muitos são jovens. Sei que isto não faz um público enorme! Tudo começou com certa crítica musical que não se interessava pelos discos, agora já não me choca. José Mário Branco também se retirou. Ele sempre fez menos discos e tem a faceta de produtor. Eu dediquei-me à música de bailado, de teatro e cinema. Não acha que cruzaram os braços perante alguma indiferença? Não, cruzei os braços a partir de um certo momento porque decidi fazer música para bailado e foi natural dedicar-me mais à composição. Ainda tentei uma coisa que se faz em França, o pequeno recital, e percorrer o país. Pensei que criaria um público, mas não fez escola e fui perdendo o gás. Recentemente, teve premiado o tema do filme Os Gatos não Têm Vertigens. O prémio não quer dizer nada. Gosto é de compor para cinema. Pode dizer-se que não volta à canção? Se o que quer é poder dizer “Luís Cília ataca de novo”, não. Estudei guitarra clássica, cheguei a tocar razoavelmente, e hoje já nem sei tocar viola. Perdi o hábito e teria de recomeçar tudo. Agora é tudo feito no computador. Esqueceu-se dos acordes mas não do Maio de 68, a que assistiu em direto. 50 anos depois, o que recorda? São momentos inesquecíveis, é como o 25 de Abril em Portugal. Eu vivia muito perto de onde tudo acontecia, por isso fui acompanhando o Maio de 68 nas universidades. Íamos cantar onde nos chamassem, às fábricas ocupadas e a associações de portugueses. Com os estudantes, discutia-se muito mas cantava-se pouco. Achou que a revolta ia dar em algo? Não pensávamos em nada, vivia-se o momento. Era surreal ver a Sorbonne ocupada, as discussões políticas do Cohn-Bendit... Não sei se havia futuro, porque no fim o poder tem sempre defesas. Hoje, acho que não tinha grande futuro, mas foi bom enquanto durou. Arrancou alguma das pedras da estrada para atirar aos “reacionários”? À polícia, aos CRSS! Não, nunca atirei nenhuma pedra mas lembro-me de andar a fugir à frente da polícia. O Maio de 68 faz-lhe lembrar o Verão Quente de 1975? É diferente, o Maio foi uma festa e o Verão foi de grandes contradições. Um dia encontrei o Carlos Paredes e ele disse-me: “Oh Luís, isto é tudo de papelão.” É uma frase emblemática do que se vivia nessa altura.