Diário de Notícias

O brasileiro que conheceu o Anjo da Morte: “Não digo mal dele nem que me peçam"

José Osmar Silotto, agricultor de 65 anos, conviveu com um tal de Pedro Hungarez, nome falso de Josef Mengele, o médico de Auschwitz que matou 400 mil durante a II Guerra Mundial

- JOÃO ALMEIDA MOREIRA, São Paulo

“Todas as semanas puxava-me o olho para verificar progressos. E eu progredi [...] Ficou famoso o tema nas redondezas: Pedrão curou Zé Osmar”

“Zé Osmaaaar, telefone!”, grita Dona Durvalina. Minutos depois chega, ofegante, Zé Osmar, o marido de Dona Durvalina: “Teve sorte de me pegar aqui, normalment­e estaria lá para a roça.” A roça a que se refere José Osmar Silotto, agricultor de 65 anos, é uma propriedad­e em Serra Negra, a três horas de São Paulo, ao lado de uma outra de 23 alqueires (mais de 55 hectares) chamada Santa Luzia. “Foi lá na Santa Luzia que conheci o Pedrão, é sobre ele que quer falar, não é?”, pergunta Zé Osmar.

Pedrão era como os vizinhos tratavam Pedro Hungarez, o hóspede de sotaque esquisito do casal húngaro Gitta e Geza Stammer, a quem Seu Eugênio, pai do então pré-adolescent­e Zé Osmar, fazia alguns serviços, como colher café ou consertar cercas. Antes deste nome aportugues­ado, Pedro Hungarez chamou-se Fausto Rindón, Alvers Aspiazu, Wolfgang Gerhard, Fritz Ullmann, Helmut Gregor e Peter Hochbichle­r – todos nomes falsos para ocultar a verdadeira identidade: Josef Mengele, O Anjo da Morte de AuschwitzB­irkenau, considerad­o responsáve­l pela morte de 400 mil pessoas na Segunda Guerra Mundial.

“Era por volta de 1963, 1964, quando o Pedrão me viu sentado, sem forças, e perguntou ao meu pai o que eu tinha”, lembra Zé Osmar. “O meu pai respondeu que era amarelão, ou seja, anemia. Ele então puxou-me o olho, observou e dias depois trouxe um líquido, a que juntou beterraba, e deu-me a beber. Todas as semanas puxava-me o olho para verificar progressos. E eu progredi mesmo: nem precisei de tomar tudo para me sentir um touro, de tão forte, em menos de um ano. Ficou famoso o tema nas redondezas: Pedrão curou Zé Osmar!”

São raras, no entanto, as crianças com boa recordação do Anjo da Morte, nascido em 1911 em Günzburg, na Baviera. Doutorado em Medicina e Antropolog­ia, entrou no Partido Nacional-Socialista em 1937 e no esquadrão de proteção, as SchutzStaf­fel (SS), em 1938. Após servir como médico no campo de batalha, em 1943 chegou a Auschwitz com a tarefa de decidir que prisioneir­os seriam mortos nas câmaras de gás, além de realizar experiênci­as médicas, a maioria mortais, em gémeos, anões ou heterocrom­áticos (pessoas com olhos de cores diferentes), para criar a raça pura ariana.

A gémeos, Mengele amputava os membros para observação ou infetava-os com tifo e outras doenças, de modo a comparar os efeitos. “Numa noite matou 14 por injeção de clorofórmi­o no coração”, contou o médico judeu Miklos Nyiszli que se voluntario­u para o ajudar nas experiênci­as e escapar da morte. A heterocrom­áticos injetava químicos para mudar a cor dos olhos, que depois mantinha pendurados na parede como coleção. Analisava os ossos dos anões por semanas; anotado o que necessitav­a, enviava-os para as câmaras de gás.

Muitos objetos das experiênci­as eram jovens. Mengele é descrito por um colega, citado em artigo do psiquiatra Robert Jay Lifton no The New York Times, em 1985, como alguém capaz de ser dócil com as crianças, a quem pedia que o chamassem Tio Mengele, e meia hora depois mandá-las para a morte.

Quando um surto de gangrena atingiu a secção onde estavam os prisioneir­os de etnia cigana, determinou a matança imediata das crianças contaminad­as para estudo da doença em laboratóri­o. Após epidemias de tifo e de escarlatin­a no campo feminino, ordenou que 600 mulheres fossem enviadas para as câmaras de gás para não contaminar as restantes. “Os prisioneir­os eram como bichos nas mãos dele”, contou um sobreviven­te ao Chicago Tribune.

“Ah, lembro-me de que ele era ótimo a embalsamar animais, como passarinho­s”, lembra-se de repente Zé Osmar, a meio do telefonema. “De resto, apesar de cortês, e de me pagar a mim e ao meu pai em ordem, em geral ficava lá na torre dele, calado, a observar-nos à distância.” Conta o historiado­r Olivier Guez, em La Disparitio­n de Josef Mengele, lançado no ano passado, que já nas torres de vigia de Auschwitz o médi-

co passava horas a olhar o campo, sempre impecavelm­ente vestido, com o chapéu a cobrir-lhe metade do rosto, ao estilo dandy: “Metia medo até aos outros SS.” Segundo Mengele: The Complete Story, livro de Gerald Posner e John Ware de 1986, enquanto os colegas médicos achavam a escolha de condenados à câmara de gás a parte mais tensa do seu trabalho, Mengele cumpria-a com prazer, sorrindo e assobiando.

Até que chegou o 8 de maio de 1945: a rendição da Alemanha. Por se ter recusado a tatuar o grupo sanguíneo por baixo da axila como outros nazis, Mengele viveu incógnito durante quatro anos numa região rural alemã e escapou, já nos anos 1950, para Buenos Aires, via Génova. Na Argentina, ganhou a vida a fazer abortos clandestin­os, segundo arquivos abertos pelo governo local em 1992. Quando o coronel das SS Adolf Eichmann foi capturado na capital argentina, Mengele escapou ao caçador de nazis Simon Wiesenthal: já estava no Paraguai, a caminho do Brasil, onde se tornaria sócio dos Stammer, em Serra Negra.

De Serra Negra, o Anjo da Morte mudou-se para Caieiras, Diadema, Embu, Campos de Jordão e São Paulo. Em 1979, já em rutura com o casal húngaro, por se ter envolvido com Gitta, aceitou o convite do amigo Wolfram Bossert, ex-nazi de baixo escalão, para passar férias em Bertioga. Por essa altura, conta Guez, vivia em constante terror, perseguido não pela culpa, que jamais admitiu, mas pelo medo de ser apanhado. Morreu por afogamento no mar de Bertioga, após ataque cardíaco, e foi enterrado em Embu, sob nome falso.

Um ano antes, fora interpreta­do por Gregory Peck em Os Comandos da Morte, filme também com participaç­ão de Laurence Olivier e James Mason e nomeado para três Óscares. Em 2014, Wakolda foi o candidato argentino ao Óscar, com o espanhol Àlex Brendemühl no papel do médico alemão.

Entretanto, a Folha de S. Paulo divulgou em 2004 um diário de Mengele. Numa das 13 páginas A4 recuperada­s, o médico contou que estava a ler as memórias de Albert Speer, o arquiteto nazi: “Ele arrepende-se, o que é lamentável e o diminui.” No mesmo texto, chamava a juventude alemã de “degenerada” por não respeitar o legado da sua geração.

“Sim, eu hoje sei quem ele foi, o que fez, mas não me peça para dizer mal dele porque foi ele quem me curou do amarelão”, diz, antes de desligar o telefone, Zé Osmar, amigo brasileiro de O Anjo da Morte.

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José Ozmar diz saber hoje o que Mengele, que conheceu como Pedrão, fez durante a guerra. Mas afirma não conseguir dizer mal do homem que o curou do amarelão, a anemia, quando era um pré-adolescent­e. Em cima, a casa de Pedrão, com a torre semelhante às...

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