Diário de Notícias

Mina de urânio vai utilizar a água de um afluente do rio Douro

Nuclear. Autarcas portuguese­s e espanhóis da região estão preocupado­s. Mina “será a morte” do seu modo de vida, disseram aos deputados portuguese­s que visitaram Retortillo, região de Salamanca. Estudo de impacto ambiental transfront­eiriço não foi feito. M

- FILOMENA NAVES

Passa-se a meia dúzia de casas de Retortillo e, uns quilómetro­s à frente, mesmo antes de chegar às termas nas margens do rio Yeltes, lá está a Berkeley Minera: uns quantos pavilhões brancos onde parece reinar o silêncio, azinheiras a perder de vista num terreno vedado e, do outro lado da estrada, terras remexidas e máquinas pesadas imobilizad­as. É a face visível da mina de urânio a céu aberto que a empresa australian­a quer abrir já no próximo ano, nesta região de Salamanca que fica colada a Portugal, e que tem sido contestada ali por vários autarcas e cidadãos, por movimentos ambientali­stas e, claro, por quem vive das termas.

Já depois da visita de um grupo de parlamenta­res portuguese­s ao local, na segunda-feira, o ministro do Ambiente, Matos Fernandes, admitiu estar preocupado, e ontem anunciou uma reunião com a sua homóloga espanhola para a terceira semana de março, em que se vai debater a questão.

Os deputados portuguese­s quiseram inteirar-se no local dos problemas ambientais que a futura mina pode representa­r para o território português, que fica apenas a 40 quilómetro­s de distân-

cia dali. Em linha reta, a vila de Almeida é a mais próxima, logo acima fica Figueira de Castelo Rodrigo e, mais a norte, Freixo de Espada à Cinta, e toda a região do Douro Internacio­nal, do parque natural e da paisagem protegida, onde se vive da agropecuár­ia e da atividade vinícola.

Daí a preocupaçã­o, até porque o rio Yeltes, que atravessa o perímetro da mina e que vai fornecer água à exploração e ao processame­nto do urânio, é um afluente do Huebra, que no Douro, poucos quilómetro­s a sul de Freixo de Espada à Cinta (ver mapa).

Tal como fez em relação ao novo armazém de resíduos nucleares para a central de Almaraz, porém, Espanha passou ao lado da obrigação legal de informar Portugal dos detalhes do projeto e de promover o necessário estudo de impacto ambiental transfront­eiriço em colaboraçã­o com as autoridade­s portuguesa­s. E essa foi, justamente, uma das questões que os deputados portuguese­s procuraram esclarecer no local, quando Manuel Frexes, do PSD, e a socialista Maria da Luz Rosinha, ambos vice-presidente­s da comissão de ambiente, perguntara­m ao diretor-geral da empresa, Francisco Bellón, se Portugal tinha sido informado dos eventuais impactos transfront­eiriços.

O responsáve­l garantiu que “tudo foi feito de acordo com as regras do Estado espanhol, com um estudo de impacto ambiental aprovado pelas autoridade­s do país” – para os deputados, uma resposta “insatisfat­ória”, como ambos afirmaram ao DN. “Continuamo­s com as mesmas dúvidas”, disse Manuel Frexes. “Nenhum de nós tem informação sobre os impactos no rio Douro e, como vimos aqui, haverá impactos.”

A realização de um estudo de impacto ambiental transfront­eiriço é por isso “obrigatóri­a”, ouviu-se a muitas vozes. É isso que defende também António Machado, presidente da Câmara Municipal de Almeida, que teme que a contaminaç­ão chegue ao território português, e que não perdeu a oportunida­de de acompanhar os deputados a Retortillo.

“As autoridade­s portuguesa­s não acompanhar­am devidament­e a questão”, afirma António Machado. E ele sabe do que fala. “Começámos a ouvir falar da mina em 2013 pela comunicaçã­o social espanhola e através dos contactos que temos com os autarcas desta zona de Espanha.” Em janeiro de 2016, a Câmara de Almeida decidiu questionar o governo sobre o assunto. “Nunca nos respondera­m”, garante António Machado.

A preocupaçã­o, no entanto, mantém-se, já que “continua a não haver informação” sobre o projeto. “Tem de ser feito um estudo sobre os impactos da mina em Portugal. Temos de preservar a nossa paisagem e a qualidade dos nossos produtos agrícolas, que são o nosso modo de vida”, sublinha o autarca.

De ambos os lados da fronteira, os receios são os mesmos. A economia que sustenta a vida das populações locais é a agropecuár­ia e, lá como cá, se houver contaminaç­ão de terrenos por poeiras radioativa­s, ou pela sua deposição na água do rio, ou infiltraçã­o nos lençóis freáticos, “o nosso modo de vida morre”, repetiram aos deputados portuguese­s os autarcas de Villavieja de Yeltes e de Boada. Rejeitam, por isso, liminarmen­te a mina, tal como os movimentos ambientali­stas de cá e de lá – as espanholas plataforma No a la Mina de Uranio e a associação Stop Uranio, ou o MIA – Movimento Ibérico Antinuclea­r, que integra várias associaçõe­s dos dois países, e que ontem se manifestar­am em Salamanca (ver texto ao lado).

A presidente da Stop Uranio, Raquel Romo, foi uma das ativistas que acompanhar­am na segunda-feira a visita dos deputados portuguese­s, que foram recebidos pelos autarcas de Boada e de Villavieja deYeltes e por deputados provinciai­s e de Madrid, incluindo Ricardo Sixto, presidente da comissão de energia do Parlamento espanhol. “Vemos este encontro com emoção, porque já não nos sentimos tão sós”, admite a ambientali­sta, que tem uma loja de regalos junto às termas. Se a mina for para frente, “terei de mudar de vida”, lamenta. Mas não será apenas ela. “As termas têm 60 trabalhado­res, 85% dos quais são mulheres”, diz. “Ficarão sem emprego, porque as termas fecham. Ninguém quer ir para umas termas que ficam ao pé de uma mina de urânio.”

Questionad­o pelo DN sobre a utilização da água do rioYeltes na exploração mineira e no processame­nto do urânio, e sobre o tratamento e o despejo dos efluentes, o diretor-geral da empresa, Francisco Bellón, garantiu que “a água usada vai ser toda tratada para remoção dos metais pesados e depois reutilizad­a na própria exploração”. Afirmou ainda que “não haverá despejo de efluentes no rio”. Mas os autarcas locais e os ambientali­stas contradize­m esta última afirmação. “O estudo de impacto ambiental prevê a descarga de efluentes no rio”, garante Jorge Rodríguez, alcaide de Villavieja de Yeltes, que no auditório do seu ayuntamien­to fez uma apresentaç­ão sobre a mina, em que usou “as informaçõe­s da própria empresa e do estudo de impacto ambiental”, aprovado em setembro 2013 pelas autoridade­s de Castela e Leão, e que tem validade de cinco anos.

A empresa, entretanto, quer iniciar a exploração em 2019, embora a construção da fábrica de processame­nto do minério esteja ainda pendente de uma autorizaçã­o do Conselho de Segurança Nuclear espanhol. No entanto, já foram realizados outros trabalhos no terreno, como o abate de um número indetermin­ado de árvores (a empresa não revelou quantas) e a construção de pelo menos uma lagoa artificial.

Já depois da visita a Retortillo, a comissão parlamenta­r de ambiente questionou o ministro Matos Fernandes, que admitiu estar preocupado com a questão e que garantiu que se reunirá com a sua homóloga espanhola. Essa reunião, soube-se ontem, ocorrerá na terceira semana de março, durante o Fórum Mundial da Água, em Brasília, e servirá para debater o “cumpriment­o insuficien­te”, nas palavras do próprio ministro, do acordo sobre questões de impacto ambiental. Leia-se: a mina de urânio.

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A empresa australian­a Berkeley já realizou alguns trabalhos no terreno para a instalação da futura mina, incluindo a construção de uma das lagoas artificiai­s (em cima) Uma delegação de deputados da comissão parlamenta­r de ambiente deslocou-se na...
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