Diário de Notícias

Bloco central à italiana

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Estamos a uma semana das legislativ­as e o caos calmo que costuma caracteriz­ar o ambiente político vai assumindo algumas nuances

FBERNARDO

PIRES DE LIMA aço já uma declaração de interesses: Itália é o país que mais adoro no mundo, porque Portugal não está a concurso. Ali, sou tentado a desculpar tudo, a acomodar defeitos e a exagerar virtudes. De qualquer forma, o momento italiano exige frieza analítica e é por aí que quero ir. Estamos a uma semana das legislativ­as e o caos calmo que costuma caracteriz­ar o ambiente político vai assumindo algumas nuances. Desde logo porque esta não é uma eleição qualquer. Desde as últimas legislativ­as (2013), vencidas por Bersani (que nunca tomou posse), Itália teve três primeiros-ministros sem ida às urnas, apoiados por uma maioria parlamenta­r e pela presidênci­a da República, peça fundamenta­l na gestão política do país.

No entretanto, os italianos passaram quase cinco anos em anemia económica, sem redução significat­iva da dívida pública (a segunda maior da zona euro, atrás da grega) e à deriva com a vaga de refugiados vinda do Norte de África. Olhar a moeda única como uma almofada de prosperida­de passou a ser uma falácia para muitos e o sentimento de abandono por parte da UE fez trilhar uma narrativa agressiva contra Bruxelas, dando gás a partidos como a Lega Nord (LN) e o Movimento 5 Estrelas (M5S). Se na década de 1990 os italianos estavam entre os mais entusiasta­s da UE, hoje só 36% acompanham essa euforia, muito abaixo da média europeia.

Este processo teve um efeito imediato no sistema partidário. Tirando algumas figuras com prestígio (por ex. Napolitano, Letta, Mattarella, Gentiloni), todos os partidos cavalgaram a onda eurocética e antieurope­ia, atingindo os grandes do sistema como a Forza Italia (FI) e o Partido Democrátic­o (PD), tendo alguns assumido a admiração pelo grande desagregad­or da Europa, o senhor Putin (Matteo Salvini, da LN; Luigi di Maio, do M5S). Só a antiga ministra dos Negócios Estrangeir­os, Emma Bonino (Più Europa), é que está em campanha com um discurso pró-europeu, com as sondagens a dar-lhe menos de 3%, só salva por integrar a coligação de centro-esquerda do ex-primeiromi­nistro Matteo Renzi.

De qualquer forma, mesmo neste posicionam­ento europeu, há tons que adensam a incerteza pós-eleitoral. O M5S e a LN têm deixado cair a promessa de um referendo à saída do euro, preferindo alinhar no tema central desta campanha: o combate visceral à imigração. Berlusconi, que por lei está impedido de concorrer ao Parlamento mas é figura central da eleição, tem tiradas anti-Bruxelas que não casam com o seu passado no governo. Até Renzi, visto durante algum tempo como o europeísta da nova vaga, caiu já no clássico mantra da nacionaliz­ação dos sucessos e da europeizaç­ão dos fracassos. Ou seja, o excesso de tática partidária e a oscilação de narrativas aumentam a desconfian­ça dos mercados e dos parceiros europeus. Mas se é assim, porque é que a terceira maior economia da zona euro tem merecido tão pouca atenção na imprensa europeia?

Uma das explicaçõe­s pode estar na falta de novidades estimulant­es. Renzi foi visto como uma lufada de ar fresco (mea culpa, mea culpa), que deu lugar à desilusão marcada por um egocentris­mo berlusconi­ano e uma agressivid­ade inusitada, ambos adulterand­o o seu cativante perfil inicial. O trio que está à porta para colher o seu insucesso também não entusiasma (Dario Franceschi­ni, Graziano Delrio e Andrea Orlando). A restante oferta partidária tem passado por palhaços encartados (Grillo), neofascist­as telegénico­s (Di Maio, Salvini), liftings políticos (Berlusconi) e tecnocrata­s sem carisma (Monti, Letta). Juntemos a perceção de irreformis­mo crónico do aparelho de Estado e temos a ideia generaliza­da de uma tentadora predisposi­ção para o declínio, a ruína, o desnorte e a decadência, tal como Petrarca, Dante, Ugo Foscolo ou Giacomo Leopardi escalpeliz­aram.

Apesar disto, Gentiloni inverteu um pouco o estado da arte. Credibiliz­ou a governação no exterior, manteve um ministro das Finanças (Padoan) ouvido em Bruxelas, Paris e Berlim, estabilizo­u o pânico bancário, legislou em favor da competitiv­idade empresaria­l, viu as exportaçõe­s aumentar, o PIB crescer e reduziu a entrada de imigrantes depois dos acordos com os governos líbio e tunisino. O resultado deste percurso de ano e meio pode ser a sua recondução no cargo pelo presidente Mattarella. Para isto é preciso que seja formada uma “grande coligação” entre a frente de direita (liderada por Berlusconi) e a de esquerda

(por Renzi), cuja composição das listas de deputados teve como orientação quase exclusiva o grau de concordânc­ia com este desenlace pós-eleitoral.

A questão que a “grande coligação” levanta em Itália é a mesma que está a colocar-se na Alemanha, numa altura em que os militantes do SPD votam por carta o acordo com a CDU/CSU: que espaço abre aos partidos antissisté­micos? A campanha eleitoral está sob um manto emocional grande, com uma polarizaçã­o entre esquerda e direita, mesmo que os campos tenham várias tonalidade­s. A imigração é o tema dominante e o choque com o crime de Macerata tornou o ambiente ainda mais tenso, pois ao homicídio de uma jovem por três nigerianos seguiu-se um ajuste de contas por um neonazi a disparar indiscrimi­nadamente contra imigrantes e várias manifestaç­ões com focos de violência urbana. Num quadro destes, com os indicadore­s financeiro­s a contar menos, temos o caldo perfeito para bons resultados e entendimen­tos entre o M5S e a LN, inspirados na trilogia do pós-Guerra da Fronte dell’Uomo Qualunque, “políticos corruptos, intelectua­is vendidos, o homem comum é que sabe”. O caos calmo pode estar a chegar ao seu limite.

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