Diário de Notícias

“Um africano a falar russo é quase um unicórnio”: Manuel Fernandes fala da vida na Rússia, da seleção e do Benfica

- ISAURA ALMEIDA

Aos 32 anos, Manuel Fernandes está a atravessar um dos melhores momentos da carreira , no Lokomotiv Moscovo. Como foi parar à Rússia, como é viver em Moscovo e como foi voltar à seleção, além do início no Benfica, foram assuntos de conversa com o DN.

Aquele hat-trick em Nice foi um belo jogo do Manuel Fernandes... Foi… as coisas não começaram muito bem, tivemos uma séria dificuldad­e em lidar com o jogo ofensivo do Nice, mas depois conseguimo­s adaptar-nos, fizemos algumas mudanças a nível prático, e consegui marcar três golos, quase em três remates, o que também ajudou bastante. Ganhar por 3-2 e ter três golos fora de casa foi uma bela vantagem para o segundo jogo (1-0). Já tinha feito dois hat-tricks esta época, o que não é muito comum, mas agora estou a jogar numa posição mais avançada no campo e tenho mais oportunida­des de finalizar. Sabe que é o primeiro médio português a fazer mais de um hat-trick nas competiçõe­s europeias? Só Eusébio (três) e Ronaldo (sete) fizeram mais ... Não sabia. É motivo de grande orgulho, poder estar ao lado dos dois melhores jogadores de sempre do futebol português e poder fazer parte, pelo menos estar nesse lote com eles, é motivo de bastante orgulho. Apesar de tudo não deixa de ser algo muito estranho [risos]. Também foi eleito o melhor jogador dessa jornada da Liga Europa. Os títulos individuai­s são importante­s? É importante para o próprio ego, para dar um boost na confiança. Mas na verdade o que é realmente necessário é saber lidar com isso, porque, tal como se é elogiado, muitas vezes também se é criticado. É preciso tentar encontrar um equilíbrio entre um e outro. Obviamente que os jogadores gostam que o seu trabalho seja reconhecid­o, uns mais do que outros, mas deve lidar-se com isso com um certo cuidado, porque senão o futuro passa fatura... Foi na Rússia que encontrou o equilíbrio como jogador? Sim. A verdade é que se começa a ser mais notícia quando se faz mais golos e o facto de jogar mais avançado no campo e ter mais preponderâ­ncia na equipa ajuda a que isso aconteça. Depois tem que ver um bocado com a maturidade, a nível pessoal e desportivo, penso que atingi a maturidade certa ou, digamos, cheguei ao ponto certo nesta fase da vida e da carreira. Quando o Lokomotiv mostrou interesse, aceitou logo ou houve um período de reflexão? Tive de pensar. Foi difícil pelo facto de me sentir em casa no Besiktas, passei lá bons momentos, também pratiquei lá um futebol bastante bom e estava muito contente. Estive perto de renovar, mas as negociaçõe­s não foram a bom porto e decidi-me pelo Lokomotiv de Moscovo. Uma experiênci­a nova, num campeonato menos conhecido, mas acabou por ser a decisão correta. Na minha opinião nós é que acabamos por fazer essa decisão correta ou não e, neste caso, tenho feito as coisas da forma correta. Depois de já ter jogado na liga portuguesa, na liga espanhola, na liga inglesa e na liga turca, foi difícil adaptar-se ao futebol e à vida na Rússia? Custou um bocado, pela parte cultural. O campeonato é bastante diferente dos outros onde já joguei, mas penso que a parte mais complicada foi mesmo a parte cultural, a forma como se fazem aqui as coisas, como pensam, como agem, foi a parte mais difícil. Depois de ultrapassa­r o choque cultural, a parte da língua foi talvez a mais difícil porque nem toda a gente, ou poucas pessoas, falam inglês no dia-a-dia. E como é que resolveu isso? Estive a estudar russo durante dois anos e meio, ainda hoje estudo. Quis aprender russo porque era necessário, tinha dificuldad­e em comunicar com as pessoas que não falavam inglês, achei que era realmente necessário aprender. O primeiro ano foi complicado, aprender o cirílico e as palavras mais básicas, mas com o tempo acabei por me acostumar e é uma língua que realmente dá-me gosto falar. As pessoas ficam surpreendi­das por ver um africano a falar russo, é quase um unicórnio. A verdade é que desportiva­mente as coisas começaram a compor-se a partir daí e senti da parte dos russos um respeito diferente. Como é a sua vida em Moscovo? O que faz quando não está a treinar ou a jogar? Gosto de ir ao ginásio, faço pilates, também sou adepto de boxe. Gosto também de ler e de manter o meu tempo ocupado o máximo possível. Ainda não consigo ler romances em russo, a não ser que sejam livros para crianças... Aos 32 anos, o que ainda podemos esperar do Manuel Fernandes? Sinceramen­te eu continuo a divertir-me e a fazer aquilo que gosto, acho que é a melhor maneira que consigo para responder à pergunta [risos]. Tem contrato por mais uma época (até 2019). E depois? A renovação é uma questão em cima da mesa? Sim, já foi falado e veremos como vão evoluir as negociaçõe­s. Este não é o momento apropriado para andar nesse tipo de negociaçõe­s. Vamos começar os primeiros jogos oficiais e não é algo que me preocupe assim tanto. Olhando para trás, acha que conseguiu superar o rótulo de jovem promessa do Benfica ou não? É complicado. Levo muitos anos a jogar fora e em campeonato­s que têm uma visibilida­de mais pequena e as pessoas ainda estão agarradas a essa imagem de jogador do Benfica, o que é de certa forma natural, mas sem ver o jogador que sou hoje [risos]. Sei que se o campeonato português não é muito visto, o russo menos ainda, e se não vamos aparecendo acabamos por ficar um bocado no esquecimen­to. Por isso, de certa forma, as pessoas ainda têm essa imagem do Manuel Fernandes com 18 anos e a pesar 60 quilos [risos]. Mas esse jogador já não existe… não é que não exista, mas é um jogador muito diferente. E a alcunha – Manelélé – ainda existe ou perdeu-se no tempo? Só mesmo as pessoas que me veem jogar há muito tempo é que ainda estão agarradas ao Manelélé. Tanto como jogador ou posição em campo essa alcunha já não faz muito sentido. Mas se há pessoas que ainda gostam de utilizá-la não faz mal algum. Falando desses tempos , o Benfica ainda faz parte da sua vida ou foi mais um clube por onde passou? O Benfica é que me deu a oportunida­de de me tornar um atleta de alta competição, um clube onde estive dos 8 aos 19 anos, que me ajudou em tudo o que foi preciso e fará sempre parte da minha vida. Independen­temente de estar à muito tempo fora e do que possa ter acontecido ou não, guardo o Benfica sempre com muito carinho. Foi no Benfica que fui campeão nacional. E voltar a jogar de águia ao peito? É complicado, agora velho... Velho? O fim da carreira é uma coisa que o atormenta ou nem por isso? Não me atormenta, é simplesmen­te algo que acontecerá, a questão é saber quando. Eu vivo a desfrutar aquilo que faço. Tenho de jogar com responsabi­lidade, obviamente, mas é essencial poder desfrutar, porque isto não dura muito tempo e estou a aproximar-me do final da carreira. O fim vai depender muito do meu estado anímico, mas mais se calhar do meu físico. Hoje, a nível anímico, sinto-me bem, mas o nível físico será prepondera­nte. Falando em físico, como disse já não é o Manuel Fernandes de 18 anos e 60 quilos do Benfica. O que mudou? Em Valência, há quase sete ou oito anos, ganhei o hábito de trabalhar fora

do que é o treino diário. Precisava de fazer um trabalho complement­ar, porque achava que os treinos não eram suficiente­s e penso que isso ajudou a tornar-me mais forte e a diminuir o risco de lesões. Ajudou-me a estar agora com 32 anos e chegar ao fim dos 90 minutos sem ter problemas físicos ou ter poucos problemas físicos. E na personalid­ade, o que mudou? O rótulo de enfant terrible ainda faz sentido? As pessoas não me veem diariament­e e geralmente não me conhecem, eu também não sou dado a entrevista­s, nem me exponho muito. Não sou nenhum santo, que fique aqui muito claro, mas as pessoas acabaram por tirar ilações de uma ou outra situação e rotular-me. Não me incomoda, acaba por ser também um pouco normal, mas as pessoas que lidam comigo e me conhecem sabem que esse enfant terrible é simplesmen­te uma pessoa frontal, que diz o que pensa, mas que também gosta que lhe digam as coisas de forma clara. Numa ou outra situação no passado errei bastante, mas faz parte da aprendizag­em e da juventude... daí ao rótulo de enfant terrible já é outra conversa. Esses erros que diz que cometeu e que foram aprendizag­em... qual deles gostava de ter evitado? Todos fazem parte do Manuel Fernandes que sou hoje. Por norma, só com os erros é que aprendemos e acho que tudo isso fez de mim o atleta e a pessoa que sou hoje. Tudo ajudou, o bom e o mau, mas especialme­nte o mau, ou o menos bom. Todos tiveram a sua parte e ajudaram a que houvesse algum tipo de mudança, uma forma de pensar e agir diferente. É internacio­nal e ajudou Portugal a qualificar-se para quatro fases finais, mas acabou por não ir a nenhuma... Não sabia... quer dizer, sei que não fui a nenhuma fase final. Há alguma mágoa por isso? Não, mágoa não, no fundo são decisões que têm de ser respeitada­s. A única em que posso ter ficado, não diria magoado, mas mais chateado foi em 2012. Tinha feito uma temporada bastante boa pelo Besiktas e não tive oportunida­de de jogar no Europeu. Sou realista, tirando essa fase final penso que as outras não, na fase em que eu estava não se justificav­a a minha chamada, por isso não posso encarar com mágoa. A de 2012 custou mais pelo facto de acreditar que merecia, tinha feito uma época boa, mas são opções que têm de ser tomadas e não são fáceis para ninguém. Aquela situação com o Paulo Bento ficou resolvida [ex-selecionad­or acusou-o de renunciar à seleção] ou é um assunto com o qual não perde tempo ? Não havia nada para ser resolvido. A história não é assim tão linear como parece, como é contada por alguns indivíduos, mas penso que é uma história que não faz sentido recuperar. Já lá vão seis anos e essa conversa não acrescenta valor, a não ser remexer no passado, por isso… Nunca tive muito a necessidad­e, vontade, nem muita paciência para bate-bocas. Eu quero é jogar à bola e fora de campo estar o mais longe possível de confusões ou de coisas menos boas. Da minha parte ficou resolvido na altura, e aqui estamos. Consegui voltar à seleção passado bastante tempo, vou tentar dar o meu contributo da melhor forma possível e com isso já fico bastante feliz. E como foi quando Fernando Santos o voltou a chamar à seleção? Soube quando a convocatór­ia saiu à hora de almoço. Tinha acabado de treinar e alguém me mandou uma mensagem a dar os parabéns. Eu não sabia do que se tratava, depois é que percebi que tinha sido convocado. Como foi esse regresso à seleção? Foi um regresso bastante tranquilo, estive com muita malta nova, a sentir-me um bocado velhote, mas é um grupo muito talentoso. Penso que Portugal tem uma geração bastante boa para fazer coisas importante­s no futuro. Para além do golo tive a oportunida­de de jogar os dois jogos, 60 minutos no primeiro, 90 no segundo, deu para competir, deu para mostrar as minhas qualidades e a forma em que estou, e ser mais uma opção para o selecionad­or, caso necessite. E quais são essas qualidades e mais-valias do Manuel Fernandes? Possivelme­nte a experiênci­a. Todos eles, tirando provavelme­nte o João Moutinho, são mais novos, bem mais novos do que eu. A parte da experiênci­a e a competitiv­idade, penso que é isso que posso realmente dar à seleção, esse seria o meu maior contributo. O facto de jogar na Rússia dá-lhe algum tipo de vantagem na corrida por um lugar no Mundial 2018? Não, é simplesmen­te uma coincidênc­ia o Mundial ser na Rússia, não penso que seja razão para me dar vantagem. A Rússia tem sido protagonis­ta de alguns casos de racismo no desporto. Já alguma vez sentiu algum tipo de problema desses ? No campo não dou muita importânci­a, há sempre adeptos que ainda estão um bocado agarrados ao século XV, mas não me parece algo muito generaliza­do. Não tenho assim nenhum episódio que me recorde e que me tenha marcado ou deixado melindrado. Mas gosto de pensar que isto é simplesmen­te uma cultura diferente, uma mentalidad­e mais fechada, apesar de não ser justificaç­ão para certas atitudes. Agora voltemos ao início, o Manuel começou no futsal... Comecei, sim. No Sporting... E como se deu a passagem do futsal para o futebol? No futebol o campo era enorme [risos], parecia que nunca mais acabava. Foi giro, também ainda era muito novo, quando comecei a jogar futsal tinha 6 anos e depois continuei a jogar em simultâneo com o futebol. A partir dos 9 deixei de jogar futsal e dediquei-me em full-time ao futebol no Benfica. Mas acompanha o futsal? Seguiu agora o Europeu? Gosto muito de ver futsal, é um desporto que me agrada bastante. Não vi os jogos todos, mas acompanhei os resultados. Ver Portugal campeão da Europa em futebol e futsal é espetacula­r.

“De certa forma as pessoas ainda têm essa imagem do Manuel Fernandes com 18 anos e 60 quilos

[risos], mas esse jogador já não existe… não é que não exista, mas é um jogador muito diferente ”

“Tirando o Euro 2012, penso que, nas outras fases finais, como eu estava não se justificav­a a minha chamada”

“O regresso à seleção foi bastante tranquilo, estive com muita malta nova, a sentir-me um bocado velhote. Portugal tem uma geração bastante boa para fazer coisas importante­s no futuro”

“As pessoas ficam surpreendi­das por ver um africano a falar russo, é quase um unicórnio”

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Em Moscovo, Manuel Fernandes gosta de se manter ocupado. Ir ao ginásio – é adepto de pilates e boxe – ou ler um livro fazem parte das coisas que mais gosta de fazer. Está adaptado à Rússia e já fala (e gosta de) russo

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