Diário de Notícias

Ultrajes

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De todos os meus professore­s de liceu só estou a ver um, só um, que ia dar cabo do miúdo armado que tentasse massacrar-nos. Era grande, alto, forte, tinha pronúncia do Norte e vejo no seu passado caçadas

JOÃO TABORDA DA GAMA

Gosto muito dos meus filhos, como qualquer pessoa, e por isso quando abaixo os comparar ao Trump não é ofensa para eles. Nem é para o próprio Trump, porque a comparação é com o F4 (filho número quatro por ordem crescente de nascimento), de 7 anos, é bem boa, que o rapaz é esperto e ainda ontem fez uma nova piada bem tirada, que foi dizer que dar um encontrão numa caixa de um jogo de tabuleiro, o Carcassone, para o efeito, que cai e ficam as peças todas espalhadas pelo chão é “uma falta de educação física”. Está bem apanhado, o rapaz tem jeito para palavras, física porque não é ofensa por palavras, e falta de edução física porque não se controla o corpo.

Vem isto a propósito da ideia de Trump armar os professore­s na escola para evitar massacres como os de Parkland, Sandy Hook, Columbine. O F4 gosta muito de armas, apesar de já ter gostado mais, mísseis, espadas, pistolas, espingarda­s. Sim, sempre que há um massacre lá volta a discussão se se deve ou não deixar as crianças ter pistolas, pistolas de brincar. Felizmente parece que o politicame­nte correto ainda não tomou conta do assunto e posso continuar a fazer batalhas de Nerfs, psssssiu o som das balas a silvar pela sala. Que na ausência de bisontes e mamutes, e de guerras, há um ómega qualquer que fica satisfeito com uns tirinhos de brincar.

Também por isto, porque vive no meio de um arsenal, o F4 podia ter tido a ideia de armar os professore­s. Saber que o professor tem uma arma, das ver-da-dei-ras ia ser bem bonito, tudo à volta dele para mostrar a pistola (vamos presumir que Trump está a pensar em pistolas e não em nada mais pesado), vá lá professor, mostre lá mais uma vez, posso tocar? A outra razão pela qual o F4 podia ter tido esta ideia é que tenho a certeza de que não duvidaria um milímetro (milímetro aqui porque estamos a falar de calibre) que o professor dele da primeira classe é o melhor sniper do mundo. Melhor do que o Schwarzene­gger no jardim-escola (Kindergart­en Cop, de 1990), filme muito cá de casa, no ano passado até fomos a Astoria, no Oregon, ver a escola onde foi filmado, mas não escrevas essas coisas no jornal que depois não te levam a sério.

De todos os meus professore­s de liceu só estou a ver um, só um, que ia dar cabo do miúdo armado que tentasse massacrar-nos. Era grande, alto, forte, tinha pronúncia do Norte e vejo no seu passado caçadas. Dava-nos aulas de Filosofia, de que recordo apenas uma, sobre a invenção do orgasmo feminino na sociedade europeia do século XIX, claro que não se falou de outra coisa até ao teste, mas não saiu no teste, de certeza que ele não falou disso, vocês estão a inventar. Os outros, na melhor das hipóteses acertariam num de nós por engano, que não era gente do mundo da violência. Mas lá na América é tudo diferente e se calhar os setores são bons ao gatilho.

A ideia de que as armas têm um efeito positivo na prevenção do crime tem tido adeptos. Por exemplo, John Lott, um académico americano que andou por Yale e por Chicago, publicou no final dos anos 1990, com David B. Mustard, um artigo, e depois um livro, muito polémico (More Guns, Less Crime) em que defendiam, com provas empíricas, que o crime tinha diminuído nos estados que tinham legalizado o direito de uso de armas escondidas. O estudo foi muito criticado, tanto na metodologi­a como nas conclusões, e o autor saiu da Universida­de de Chicago embora seja curioso notar que o crime não aumentou nesses estados (com um agradecime­nto ao António FS por me ter falado do Lott).

Ao contrário do meu mais velho, o Trump não tem muito jeito para palavras. Num encontro com sobreviven­tes do massacre de Parkland, há dias, os jornalista­s conseguira­m filmar o papel que trazia na mão, com as notas que lhe tinham preparado para a conversa. Eram cinco pontos manuscrito­s num retângulo, o último deles, junto ao número cinco com uma bolinha à volta, era “I hear you”, estou a escutar-vos. O primeiro de todos era o que queres que eu saiba sobre a tua experiênci­a. Um cartão de tópicos, numa ocasião daquelas, com o objetivo que o presidente não se esqueça de fazer aquilo que é o mais básico instinto de empatia de todos nós leitores e tudo, incluindo os das caixas de comentário­s. Uma imagem demasiado forte de alguém a quem parece faltar uma parte de humanidade.

Claro que demasiada humanidade também é de mais (não sei quem falou na banalidade do bem), e Trudeau também me lembrou os meus selvagens nestes dias, que não perdem uma oportunida­de de se mascarar de uma coisa qualquer. Na sua viagem à Índia, mais a senhora e as crianças, não há dia que não vista um fato tradiciona­l indiano diferente, numa ânsia de globalismo que já está a irritar os indianos, que têm feito grande gozo da figura. Vale bem a pena ver as imagens, tipo Soares na tartaruga, Cavaco no coqueiro, mas em mau, e pensar um pouco. Que é preciso atacar o problema que leva a que alguém pegue em armas, ou o problema que faz que alguém odeie o diferente, que são o mesmo problema. E isso não se resolve com mais armas. Mas também não será com trajes.

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