ROGÉRIO ALVES “FIQUEI PERPLEXO COM A ESCOLHA DE ELINA FRAGA”
Vamos começar pela questão de fundo que o país voltou a discutir: a justiça precisa de uma reforma, ou isto é um chavão já gasto? É um chavão e é uma verdade. E porque é que é um chavão? As pessoas dizem: o país precisa de uma reforma da Justiça. Está bem, mas uma reforma em que sentido e para fazer o quê? Qual é a reforma da justiça em que o Dr. Rui Rio está a pensar para convidar a Dra. Elina Fraga ou outra pessoa qualquer? Eu digo muitas vezes, até aos meus alunos, que em Portugal temos de abandonar um discurso conceitual. Por exemplo: “Aquele senhor é muito alto”, não. É melhor dizer “aquele senhor tem 1,90 metros”. Para um dinamarquês será normal, para mim poderá ser alto ou baixo. Ora, primeiro temos de definir a coisa e depois qualificamos a coisa: Em Portugal qualifica-se a coisa sem a definir. Estamos sempre a falar daquilo de que não sabemos estar a falar. Definindo a coisa, quais são as duas ou três prioridades que deviam ser assumidas numa reforma deste tipo? Em primeiro lugar, não haveria propriamente uma reforma para a justiça toda. Há desafios dentro da justiça que merecem tratamento especial. Vou falar num de que toda a gente gosta muito, até do ponto de vista mediático: os chamados megaprocessos. O sistema processual de investigação e de julgamento não estava preparado para analisar, por exemplo, a atividade de um banco nos últimos dez anos, e os milhões e milhões de documentos que essa atividade produz. Portanto, acho que a justiça tem de pensar em objetivos específicos para programas específicos. Em segundo lugar, o grande desafio é simplificar. Temos de simplificar e já algumas coisas foram feitas: a introdução do Citius, o envio de peças em sistema informatizado, que agora alastrou a parte do processo penal. Depois, temos de caminhar no sentido do princípio da oportunidade: temos de selecionar dentro de condutas que nos parecem ser criminosas aquelas que são efetivamente mais graves e mais lesivas. Fazer uma reforma da justiça é pensar nisto a sério. Vamos manter o princípio de que o Ministério Público investiga tudo a toda a gente ou vamos selecionar as coisas mais graves e, se for assim, por que critério? Depois, temos de fomentar a prevenção dos litígios através de uma consulta jurídica eficaz. O que é que quero dizer com isto? As pessoas assinam, na sua vida, inúmeros documentos cujo teor ou não leem ou lendo não percebem (apólices de seguros, questões relativas à compra e venda de imóveis, contratos de trabalho...). A consulta jurídica previne o conflito. Nós temos de prevenir o conflito através do ataque aos fatores críticos de conflituosidade. Mas quando fala em consulta jurídica quer dizer o quê? As pessoas recorrerem ao advogado. E quem não tem dinheiro para pagar essa consulta jurídica? O Estado devia patrocinar esse tipo de serviços? Claro que sim. O Estado em Portugal investe pouco na justiça. Não quero entrar em chavões, mas investe pouco comparativamente com outros investimentos que faz. O apoio judiciário a quem não tem possibilidades de recorrer a advogados por questões de preço devia ser fomentado pelo Estado. Mas há uma reforma da justiça que me mete medo que é a que tem sido feita nos últimos 20, 30 anos. Nós atribuímos sobretudo a um fator as causas do atraso da justiça: os recursos e as chamadas manobras dilatórias que os advogados fazem para os processos andarem sempre com rodas quadradas. Esta é a acusação permanente. Ora, eu farei em março 31 anos de advocacia, o que é realmente uma marca já com algum relevo, e desde que comecei a exercer advocacia que os cortes nas possibilidades de recorrer têm sido sistemáticos. Esse universo de recursos foi desbastado de uma maneira brutal. Se a doença da justiça estivesse nos recursos, a justiça estaria sã que nem um pero, pois os recursos já foram quase todos cortados. A segunda medida que se tem tomado é aumentar as custas judiciais. Esse aumento é uma maneira de as pessoas não recorrerem ao tribunal. Eu tenho um litígio que vale cinco, dez mil euros, quanto é que me poderá custar ir para tribunal para fazer valer aquilo que eu acho que é o meu direito? Honorários de advogado, taxas... não vou. Ótimo. Aí há menos gente a ir ao tribunal. É desses dois aspetos que tem medo? Têm sido as duas posologias do costume. Creio que era Eça de Queirós que dizia: “O governo só tem duas coisas para fazer: pede um empréstimo e lança o imposto.” Aqui, na justiça, é aumentar as custas e cortar os recursos: não resolveu problema nenhum, nenhum. Depois, é não fazer como fez, por exemplo, o conselho geral da Ordem dos Advogados no tempo da Dra. Elina Fraga, que, quando o governo procurou fazer a reformatação do mapa judiciário, abordou a questão como se fosse em 1950 ou em 1970 quando percorrer 20 quilómetros para ir a um tribunal era uma coisa horrível. O que é que tem de se fazer? Tem de se diminuir efetivamente as idas ao tribunal e as pessoas têm de ser pouco oneradas com deslocações ao tribunal. Como? Através da utilização de meios eletrónicos ou de sistemas de proximidade que evitem que as pessoas tenham de ir ao tribunal. Hoje começa a ser frequente que se ouçam testemunhas através de Skype. Alguém se opõe? Os puristas dizem logo: “Ah, mas por Skype nós não sabemos onde é que ele está, pode estar alguém à frente dele a fazer de ponto para que ele diga isto ou aquilo”. Esses riscos
podem existir, mas para isso estão lá o Ministério Público, o juiz, os advogados, em contraditório, para tentar sanar esses males. Há uma coisa que tenho absolutamente como segura: a reforma da justiça não se faz basicamente nas leis, faz-se nos comportamentos. É necessária a tendência para simplificar, para descomplicar, porque antigamente tudo era muito solenizado, havia um rol de testemunhas: eram convocadas 20 pessoas às 9.30 para a BoaHora. Eu perguntava porquê e respondiam-me: “Ó sôtor, imagine que faltavam cinco, se nós escalonássemos isto pelas horas, as cinco primeiras não vinham e ficávamos uma hora sem fazer nada!” Tem-se verificado que agilizar e combinar com as partes, com os seus advogados, trocar a ordem das testemunhas, trazer as que estão mais perto, ligar-lhes por telemóvel, porque agora já podem, está a funcionar. É assim que nos abrimos à modernidade e que funcionamos à século XXI. Portanto, se for isto a reforma da justiça, muito bem, mas eu tenho de aguardar para saber que reforma é essa. Estou de acordo que não se pode judicializar a política e politizar a justiça, estou de acordo com isso. E tem acontecido isso ou não? Muito, muito. Atualmente, vivemos numa espécie de arguidocracia, pois a grande distinção entre os cidadãos portugueses é se é arguido ou se não é arguido. Se é arguido, já está inutilizado para qualquer função acima de terceiro ou quarto secretário. Se não é arguido tem, enfim, um certo certificado de bom comportamento. Ora, a posição de arguido é uma coisa processual. Se eu for ali à PSP dizer que os meus entrevistadores ameaçaram que me batiam se eu não dissesse determinada coisa também podem ser constituídos arguidos. Agora vamos lá rever se podem continuar nos vossos cargos tendo sido constituídos arguidos com base na minha queixa, que não se sabe se é verdade. Não pode ser assim. Mas há uma coisa que é o reverso desta. Aí, a comunicação social – que às vezes também causa bastante dano – tem um papel essencial nesta matéria, que é as pessoas serem interpeladas sobre os factos. A mim não me interessa tanto se um presidente de câmara sobre quem há uma suspeita é arguido ou não; interessa-me avaliar, até politicamente, o que é que ele fez, porque é que ele fez. Então, ele, como homem político, deve responder. Eu, como cidadão, quero saber. Por isso é que digo muitas vezes que as investigações feitas pela comunicação social são lícitas. A comunicação social pode interessar-se por um caso pelo qual os tribunais não venham a interessar-se porque há uma dimensão cívica, política, do comportamento das pessoas, que pode ser escrutinada independentemente da sua coreografia processual. Voltando à questão da reforma da justiça ou à necessidade dessa reforma: quando Rui Rio escolhe Elina Fraga como sua vice-presidente, isso dá-lhe, a si, uma ideia sobre que tipo de políticas ou de reformas é que Rui Rio está a preparar? Isto é um sinal político, em seu entender? É um sinal político e é um sinal substantivo. Devo dizer que tenho toda a consideração pelas pessoas em causa e a minha opinião é estritamente institucional. Fiquei absolutamente perplexo com a escolha da Dra. Elina Fraga, não pela pessoa em si, mas porque sempre criticou a política de justiça do governo do PSD. Portanto, se a Dra. Elina Fraga sempre criticou – às vezes de forma ácida – as políticas de justiça do governo do PSD, ficamos a saber é que a tal reforma da justiça, que ainda não foi revelada, não será aquela que foi dirigida no governo do Dr. Passos Coelho. Em segundo lugar, porque havia uma crítica dura a muitos aspetos da política de justiça, como se chegou ao ponto (numa atitude que critiquei e que é um exemplo nocivo e daninho da judicialização da política) de participar criminalmente contra membros do governo que encetaram uma alteração do mapa judiciário. Aliás, nem sequer sabemos o que aconteceu a essa queixa... Portanto, [Elina Fraga] não só foi uma crítica acérrima face a um governo do PSD como atingiu algumas epifanias, em alguns momentos épicos e até inéditos de ataque a esse governo. Confesso que, como cidadão, fico um pouco confuso com essas coisas. Só por isso, lá está, já não me preocupo – como parece preocupar toda a gente – se a Dra. Elina Fraga é arguida nisto ou arguida naquilo, aí voltamos atrás, à arguidocracia em que vivemos. Mas se ela chegasse a ministra da Justiça num futuro governo do PSD seria preocupante para si? Não é preocupante, mas não creio que conseguisse encontrar grande consenso, grande acordo e grande aprovação naquilo que me parecem ser as medidas que preconizaria. Aquilo que ela preconizou ao longo destes anos não me parece muito promissor. Pareceu-me ter havido, naquilo que conheci, resistência a mudanças relevantes a nível dos códigos, quer do Processo Penal quer do Processo Civil, às vezes com alguns erros. Eu também discordei muito de algumas coisas que foram feitas pela Dra. Paula Teixeira da Cruz, mas há um caminho de modernização e de simplificação que tem de ser encetado e vi sempre a ordem a reagir um pouco mal a esses caminhos. Agora, há uma coisa que é verdade: a estrutura de distribuição dos tribunais tem de se adaptar à localização das populações, ao aumento das acessibilidades, à desnecessidade crescente de as pessoas se deslocarem ao tribunal. O caminho é claramente aquele. De qualquer modo, gosto de ser mais objetivo do que subjetivo: se houver um programa de governo do PSD com o qual eu concorde, e isso significará, do meu ponto de vista, alguma alteração às premissas que eram essenciais no mandato da Dra. Elina Fraga enquanto bastonária da ordem, estarei de coração completamente aberto para o apreciar. Eu, mais do que quem promova, quem proponha ou quem implemente, gosto de ver o que se promove, o que se propõe e o
“O Estado em Portugal investe pouco na justiça” “A reforma da justiça não se faz nas leis, faz-se nos comportamentos” “Aumentar as custas e cortar os recursos não resolveu problema nenhum” “Não se pode judicializar a política e politizar a justiça (…) tem acontecido muito” “Atualmente, vivemos numa espécie de arguidocracia: a grande distinção entre os cidadãos portugueses é se é ou se não é arguido” “Não creio que conseguisse encontrar grande consenso (...) nas medidas que Elina Fraga preconizaria [enquanto ministra da Justiça]
que se implementa, para criticar isso e não as pessoas que o façam. Independentemente de vir ou não a ser constituída arguida, Elina Fraga é visada numa auditoria às contas da Ordem dos Advogados que aponta para uma falta de procedimentos de controlo de orçamento e gestão de tesouraria. Quando o senhor lá estava já era assim que os procedimentos funcionavam naquela ordem? [Risos] Posso dizer que quando fui bastonário procurávamos cumprir rigorosamente todos os procedimentos, o que não quer dizer que a Dra. Elina Fraga não os tenha cumprido. Atenção. Eu conheço o relatório, não só sei da sua existência como o conheço. E as conclusões surpreenderam-no? Vou ser franco: gosto pouco de espetáculo, não gosto muito de produzir soundbytes e não gosto de crucificar ninguém injustamente. Aliás, nem sequer justamente gosto. Todavia, relativamente a essa auditoria gostaria de dizer três ou quatro coisas. Em primeiro lugar, se é verdade que a Dra. Elina Fraga e os elementos que compunham o conselho geral, e que possam de alguma forma ser visados pela auditoria, não foram ouvidos, não concordo. Acho que uma auditoria deste tipo deverá ter no seu processo de preparação a audiência dos potenciais visados. Se isso não aconteceu, salvo melhor informação, a Dra. Elina Fraga terá razão. Dito isto, em vez de estarmos uma vez mais a dizer “eu ainda não sou arguido, soube disto pelos jornais, não fui ouvido” e visto que há determinados aspetos que já estão no espaço público – por exemplo, contratações efetuadas a colegas que faziam parte dos próprios corpos da ordem –, acho que isso podia ser esclarecido. São procedimentos de escolha de prestadores de serviços – penso que será disso que estamos a falar – e desconheço em absoluto se houve violação das suas regras. O que sabemos é que houve escolhas, e em vez de estarmos sempre a olhar para as regras podemos olhar para as escolhas e dizer: “Bom, fiz uma escolha política.” Às vezes, as pessoas têm de fazer escolhas políticas. Posso escolher A, B ou C. Elina Fraga devia esclarecer isso? Claro. Como explica o facto de não o ter feito? Creio que é já um pouco uma cedência a este tal diálogo conceitual e daninho que temos. Em Portugal, não falamos como falam os políticos, por exemplo, dos países anglo-saxónicos. As pessoas perguntam: “O senhor tenciona ir amanhã ao Porto?”, e eles dizem: “Não. Amanhã não vou ao Porto, mas vou depois de amanhã.” Se nós perguntarmos, a pessoa responde: “Eu já estava à espera de que me fizesse essa pergunta. Não pense que me surpreendeu com essa pergunta, o tipo de perguntas é sempre igual, mas os portugueses sabem que respondo e não posso ser acusado de fugir às repostas.” Só que nunca mais diz se foi ao Porto ou não. Quando entramos neste diálogo em órbita dos problemas, não vamos ao essencial das questões.