HÁ 300 E QUASE NINGUÉM DÁ POR ELES. MAI VAI REGULAR ATIVIDADE
Começam a trabalhar quando o país adormece e deitam-se quando Portugal acorda. Guardam casas, lojas, viaturas e garagens. Levantam receituário médico, vigiam o património público. Estão espalhados por todo o país, mas dizem que podiam ser muitos mais, cerca de 1200, se as câmaras abrissem concursos. MAI prepara portaria que vai regular profissão
JOANA CAPUCHO “Saio de casa para trabalhar, mas nunca sei se volto. Já me habituei. Sabemos que esta é uma profissão de alto risco. Andamos sozinhos, isolados do mundo. Somos mais um par de olhos a vigiar a noite. No fundo, trabalhamos para que as pessoas acordem de manhã e esteja tudo direitinho.” É Paulo Martins, de 50 anos, guarda-noturno há mais de dez, quem fala.
São 23.40 e estamos num posto de combustível, em Aveiro, onde alguns dos 12 profissionais do município se reúnem diariamente antes de começarem o turno de seis horas. Paulo veste uma farda semelhante à das forças de segurança, tem um crachá ao peito, arma e algemas à cintura e placas identificativas no carro. Já assinou a folha de presença no posto da PSP e está pronto para começar a ronda pelas ruas de Esgueira, indiferente ao facto de esta ser uma das noites mais frias do ano. “Isto não é nada”, garante, com a convicção de quem conhece bem a noite.
Antes de arrancar, conta que já assistiu a tudo no exercício da atividade. “Situações idênticas às de um autêntico faroeste. Gangues armados em assaltos a ouro, máquinas de tabaco assaltadas, carros roubados, etc.”, conta ao DN. Na sua área, “o que há mais são furtos a viaturas e vandalismo”.Vigia casas, garagens, lojas, empresas, viaturas e outros equipamentos. Mas não são raras as noites em que também tem de levantar receituário médico ou orientar idosos, que encontra a vaguear pelas ruas durante a madrugada.
É no carro particular, que à noite se transforma em carro de serviço, que seguimos com Paulo em direção a Esgueira. “Está a ver este bloco e esta caneta? É para apontar matrículas, marcas, cores e modelos de viaturas suspeitas. Quando há uma situação que levanta dúvidas, marcamos o indivíduo e ficamos a ver o que acontece”, explica. Em caso de flagrante, “se não corrermos risco de vida, tentamos reter o indivíduo até chegar a polícia”. Não tarda até encontrarmos uma viatura suspeita numas bombas de gasolina. “Já ontem esteve aqui parado meia hora. Não é o dono e não sei o que está ali a fazer. Se a ideia é assaltar, por exemplo, pode desmoralizar com a minha passagem. Se houver algum assalto, temos aqui a matrícula registada”.
Os guardas-noturnos trabalham em estreita colaboração com a PSP e a GNR, entidades às quais estão disciplinarmente subordinados. Sem receber qualquer contribuição oficial, do Estado ou dos municípios (entidade que emite as licenças), são pagos por particulares e empresas. “É uma gratificação facultativa. Cada um dá o que quer. Nós temos de ir bater às portas das pessoas e saber se querem contribuir”, refere Paulo Martins.
Não é só quem paga que usufrui do trabalho dos guardas-noturnos. Quando passamos junto à estação dos comboios de Aveiro, Paulo explica que, “se vir alguma coisa”, atua, sem que ninguém lhe pague para isso. “Os guardas-noturnos estão por sua conta e risco. Os municípios dão-nos uma licença, mas depois ficamos esquecidos”, lamenta.
Seguimos por caminhos de terra, saímos do carro para nos aproximarmos de algumas empresas, entramos nas garagens onde há particulares que colaboram com o serviço. “É uma profissão de alto risco. Vamos para zonas, como esta, muito apertadas.” Foi junto a estas garagens, perto de uma garrafeira, que Paulo apanhou um assalto. “Chamei a polícia. Ainda arrombaram a porta, mas viram-me e não levaram nada. Consegui bloquear a saída.”
Uma fábrica da famosa tripa de Aveiro, que “era assaltada quase todas as semanas”, deixou de ser alvo dos assaltantes desde que Paulo começou a patrulhar o local. “Andamos a noite toda na rua e passamos várias vezes no mesmo local para que esteja tudo direitinho quando as pessoas acordarem de manhã.” Até fazem vigilância à “B.C.” “É a boutique do cordão. Quando há roupa de marca levanta voo.”
Menos profissionais
Chegaram a existir 17 guardas-noturnos em Aveiro, mas “uns emigraram, outros desistiram, dois morreram”. Cirilo Oliveira, de 37 anos, mantém-se em atividade há 13, desde que existem guardas-noturnos no concelho. Seguiu os passos do pai, que se dedica a esta profissão praticamente desde o seu nascimento. Vigia a zona de São Bernardo, freguesia do concelho de Aveiro, sendo pago essencialmente por particulares, proprietários de espaços comerciais e também pela junta de freguesia, uma vez que guarda o seu património. “Financeiramente, já compensou mais, mas também já foi pior, porque nos anos de crise fecharam muitas lojas.” Só em combustível gasta centenas de euros por mês.
Cirilo leva-nos a conhecer a sua área de atuação. “Por aqui acontece tudo o que possam imaginar”. Recorda o dia em que foi chamado porque havia um casal a discutir em frente da igreja, há sete anos, e se deparou com um assalto a uma pastelaria. “Os assaltantes meteram-se em fuga. Fui atrás deles, começaram aos tiros em direção a mim e tive de os deixar ir. Mas consegui apanhar a matrícula e o carro acabou por ser intercetado em Albergaria”. Medo? “Não, nunca.”
É uma noite aparentemente calma em São Bernardo, mas Cirilo sabe que, num instante, tudo muda. Momentos antes de nos encontrarmos, recebeu uma mensagem que o informava que o
A atividade é remunerada por particulares e comerciantes, que decidem o valor que querem dar Trabalham em colaboração com a PSP e a GNR. Com as dificuldades de acesso à profissão, dizem que corre o risco de desaparecer
alarme de umas bombas de combustível tinha disparado. Falso alarme. “Mas aquelas bombas já foram assaltadas muitas vezes. Antigamente levavam tabaco. Agora já não conseguem, mas levam bebidas brancas.”
Nas horas vagas, Cirilo é bombeiro voluntário. “São duas atividades parecidas e nas quais há sempre muita adrenalina.” E, por vezes, também se cruzam. “Já salvei duas crianças de um apartamento que estava a arder enquanto vigiava a zona. Ia a passar e cheirou-me a queimado. Por acaso a chave estava na porta e consegui tirá-las de casa. O apartamento ardeu todo.” Também já se feriu em serviço. “Ia a correr atrás de um indivíduo que tinha ido roubar gasóleo a um camião e espetei um ferro no pé. Só me apercebi quando comecei a sentir a perna fria.”
Carlos Tendeiro, presidente da Associação Sócio-Profissional dos Guardas-Nocturnos (ASPGN), também herdou do pai a paixão pela vigilância. “Cresci com o bichinho. É uma profissão atrativa, aliciante”, diz ao DN o profissional, que atua em Lagos, no Algarve, e se encontra a acabar o curso de Direito. Quem também seguiu o mesmo rumo foi o irmão, que trabalha em Quarteira. “Quem conhece a profissão vê que tem pernas para andar”, justifica. É estimado que existam cerca de 300 guardas-noturnos em Portugal. “Não há números certos, porque o registo nacional está desatualizado”, lamenta. Estão espalhados pelo continente e Madeira, mas em maior número em Lisboa, Algarve, Leiria, Aveiro e Porto.
Embora existam registos anteriores, os profissionais dizem que foi o terramoto de Lisboa, em 1755, que fez que se intensificasse a atividade dos vigias noturnos, devido à necessidade de prote- ger bens. Só em Lisboa, diz Carlos Tendeiro, chegaram a existir 200, no ano de 1896. Por isso, critica, “não se percebe que passado tanto tempo o número seja praticamente o mesmo”.
De acordo com as estimativas da ASPGN, se cada autarquia abrisse cinco áreas, eram criados 1200 postos de trabalho no país. “Não existem mais, porque há falta de conhecimento das vantagens dos guardas-noturnos por parte dos municípios. Há câmaras que negam a abertura do licenciamento”, lamenta. Neste momento, há, segundo Carlos Tendeiro, um outro problema a preocupar a classe: o novo regime jurídico da atividade de guarda-noturno foi publicado em 2015 e “obriga a uma formação para ser ministrada pelas forças de segurança, mas ainda não saiu a portaria que a vai regular, pelo que o acesso à profissão está vedado”.
Contactado pelo DN, o gabinete do Ministro da Administração Interna adianta que “a portaria em causa encontra-se em preparação e deverá estar concluída após a conclusão das alterações legislativas em curso em matéria de segurança interna”.
Sem custos para o Estado
Fernando Rodrigues, presidente da Associação Nacional de Guardas-Nocturnos (ANGN), sublinha que este “é um serviço de interesse público que não custa dinheiro ao Estado”. “Trazemos mais segurança às ruas. Detetamos fogos, acidentes, roturas de água. Fazemos um serviço de prevenção”, frisa.
O presidente da ANGN reconhece que é um serviço que “pode passar despercebido, mas está lá”. “Quanto mais trabalhamos, por vezes menos recebemos, porque as pessoas desistem da contribuição por não existirem assaltos”, esclarece.
Há pessoas interessadas em ingressar no ramo, mas, segundo Fernando Rodrigues, o acesso não é fácil. Além do custo inicial com fardamento, formação, seguro, arma e outros materiais necessários – que pode chegar aos dois mil euros – é difícil obter rendimento nos primeiros meses. “O serviço é importante para a comunidade. O Estado tem custos? Não. Tem benefícios? Sim. Porque não ajuda inicialmente?”, questiona. Fernando assume, com tristeza, que a profissão corre o risco de desaparecer. “Está em risco de extinção por culpa de alguém. Por um lado, deviam abrir concursos e não abrem e, por outro, não há apoios.”
Por parte da família procuram compreensão, já que têm apenas uma folga ao fim de cinco dias de serviço e trabalham sempre de noite. Daí a meia-lua no crachá. Carlos Tendeiro explica que “a esfera armilar representa a nacionalidade; a meia-lua a predominância noturna do serviço; GN simboliza a atividade de guarda-noturno e a envolvência dos louros magnifica a simbologia”. É dourado porque “o ouro representa a permanente tentativa de obter conhecimento, sendo também símbolo de generosidade, fortaleza de ânimo e vigor nas ações cometidas”.