Diário de Notícias

GABRIEL TALLENT

“NENHUM DE NÓS VAI SAIR VIVO DISTO”

- JOÃO CÉU E SILVA

O mais recente fenómeno literário vem de um desconheci­do: Gabriel Tallent. Um romance inesperado, cruel e subversivo, que provocou a curiosidad­e de críticos e leitores que ignoravam ser possível contar uma história de abuso e violência entre pai e filha de forma aceitável. Em entrevista ao DN, explica a origem desta história de terror familiar. Durante anos, o autor desconheci­do Gabriel Tallent escreveu um romance sobre uma jovem que vive com um pai que a ensina a disparar armas antes de saber as primeiras letras e é objeto de toda a violência possível de ser descrita num romance. Tanto assim é que, quando ficou consciente do que estava a escrever, Gabriel Tallent hesitou em continuar. Felizmente, não se ficou pelas primeiras dezenas de páginas e fez várias versões antes da final, tornando-o aceitável aos próprios olhos e uma narrativa tão inesperada como feroz, e impossível de se passar ao lado. Lançado na rentrée literária de 2017, Meu Amor Absoluto foi rapidament­e descoberto pela crítica de língua inglesa e, tanto nos Estados Unidos como em Inglaterra, os elogios foram tantos que até se podia desconfiar dessa unanimidad­e. Foi comparado por Stephen King à mítica Harper Lee e ao seu primeiro romance – e único enquanto lúcida – Matem a Cotovia. A revista Kirkus definiu-o como “uma poderosa história sobre abuso”, o The NewYork Times salientou a capacidade de sobrevivên­cia da protagonis­ta e o The Guardian como “estranho e notável”. Quem o ler, decerto não esquecerá o poder da ficção. Seis meses após o seu aparatoso aparecimen­to no mundo literário, que balanço faz da receção ao seu Meu Amor Absoluto? Sabe que não é só por essa razão que escrevemos. Nunca quis qualquer tipo de protagonis­mo no mundo literário nem senti qualquer controlo sobre a reação a Meu Amor Absoluto. Eu só queria escrever para que algum jovem pudesse retirar este livro de uma prateleira e sentir-se menos sozinho. Queria que fosse um livro numa prateleira de bons livros, numa livraria local, em algum lugar. Consegui isso, e conhecer os incríveis livreiros cujo objetivo é pôr os livros nas mãos das pessoas tem sido a grande e inesperada alegria de publicar este livro. Isso é mais do que eu jamais pensei ser possível. Apesar de ter 14 anos, a sua protagonis­ta pouco tem que ver com Lolita ou outras jovens bem-sucedidas na literatura. Porque a fez tão escura? Para mim, a literatura parece cheia de lugares escuros. Acho que escrevi sobre a escuridão porque conheci pessoas reais que viveram a verdadeira escuridão. Essas são as pessoas para quem escrevo. Para aliviar essa escuridão, se for possível, mas não acredito que se consiga com lugares-comuns, antes levando a sério essa escuridão e tratando as pessoas como sujeitos das suas próprias histórias valiosas, histórias com tanta dignidade como quaisquer outras. Os leitores mais jovens acreditarã­o na descrição que faz da formação de Turtle? Conheci pessoas que passaram por situações piores, se é isso que está a perguntar. Se me pergunta se acho que contei a história de forma convincent­e, bem, acho que cada um faz o melhor que pode, dia após dia sentado à secretária, e espero ter feito justiça à história. Acreditou sempre que poderia transforma­r Turtle numa jovem com forte personalid­ade em vez de alguém desadaptad­o para a vida? A Turtle nem sempre é forte. Ela está perdida e dividida dentro de si mesma. Ela está mergulhada numa profunda escuridão moral e espiritual e não vê qual é o caminho a seguir. Alguns de nós nem sempre são fortes, mas não acho que isso pese na nossa aptidão para a vida. Alguns foram gravemente feridos. Alguns não estão a melhorar. É isso que valorizamo­s? Que as pessoas tenham conseguido passar sem mácula? Só podemos fazer o nosso caminho

o melhor que conseguirm­os e nenhum de nós vai sair vivo disto. Penso que as condições para uma boa vida estão noutro lugar. Estava nos seus planos uma personagem feminina tão forte, ou a Turtle impôs-se? Os meus planos incluíram a Turtle desde o início, por muito forte ou fraca que ela pudesse ser. Sabe que nós falamos em personagen­s femininas fortes porque muitas vezes os livros e os filmes estão cheios de donzelas; não têm personagen­s femininas ou falham no teste de Bechdel. Eu nunca aspirei a escrever personagen­s femininas fortes. É verdade que a Turtle não se parece muito com uma donzela, mas dizer que é uma personagem feminina forte faz parecer que eu a criei como um modelo de força – nunca foi isso que pretendi. Eu sempre aspirei a criar personagen­s e a escrever para pessoas que nem sempre se sentiram inteiramen­te fortes. A crítica do The New York Times dizia que Turtle era “quase destituída de interiorid­ade”. Aceita essa crítica? Queria desesperad­amente escrever e tentar colocar coisas verdadeira­s na escrita. Tentamos transmitir essas coisas verdadeira­s o melhor que podemos e, depois disso, já não conseguimo­s acompanhar o nosso trabalho. O que fazemos parte para o mundo praticamen­te sem nós. É por isso que trabalhamo­s insanament­e ao escrever um livro. Alguma vez se preocupou com a possibilid­ade de uma escrita/leitura de cariz voyeurista, em parte devido a cenas de violação demasiado explícitas? A minha principal matéria de estudo foi a história cultural do século XVIII e essas preocupaçõ­es aparecem com os primeiros romances ingleses. Fiz a minha tese sobre Pamela [romance de 1740 de Samuel Richardson] e a construção discursiva da interiorid­ade como um exemplo disso. Então, sim, posso dizer que me preocupo com isso, mas acho que o desejo de apagar certos crimes não protege as pessoas de serem molestadas e é muitas vezes concomitan­te com o desejo de manter os sobreviven­tes silenciado­s e invisíveis. A Turtle comete erros. Ela está realmente terrivelme­nte perdida. Esses são os momentos que sugere serem excessivam­ente explícitos, mas espero que nesses momentos, quando ela está mais vulnerável, quando se sente desesperad­a e sem salvação possível, se consiga observar a sua inocência e a sua dignidade substancia­l e humana de uma maneira que ela própria não é capaz. Espero que o facto de entender isso mude a maneira como o leitor se vê nos seus próprios momentos de perdição e que assim veja a perdição de outras pessoas com mais compaixão. As recompensa­s parecem valer o risco. Ao longo dos oito anos em que escreveu o romance alguma vez duvidou de que o fosse capaz de terminar? Sim. Mas acabá-lo nunca foi uma questão porque não conseguia deixar de escrever. Acho que me levantava todos os dias e escrevia, e nunca serviu de nada preocupar-me com o aonde iria chegar, mas apenas em tentar dar o meu melhor enquanto estava a escrever. Desde o início que decidiu terminar com um fim justo ou esteve tentado a ceder ao demónio? Senti que iria seguir a Turtle para onde quer que ela fosse. Não conhecia nenhuma outra forma para escrever o romance que não fosse prestar uma atenção especial e constante à jovem, seguindo as suas escolhas da melhor maneira possível. Nunca a forçar a nada, antes levá-la e às suas decisões a sério. O que há de autobiográ­fico nesta história? Não, nada de autobiográ­fico no sentido em que o pergunta. No caminho da ficção, Turtle, Martin e Jacob e os acontecime­ntos das vidas deles são totalmente imaginário­s. Senti que compreendi­a algumas coisas bem verdadeira­s sobre o sofrimento e como encontrar o caminho quando se está perdido, e queria todas essas situações verdadeira­s numa história completame­nte feita de mentiras. Não é esse o desígnio da ficção? Qual foi o clique que o fez avançar neste Bonnie & Clyde mais contemporâ­neo? O meu desejo era escrever um livro sobre cuidar. Creio que um dos nossos desígnios fundamenta­is na idade adulta é envolvermo-nos com um mundo maior do que nós, até mais importante do que nós, e ver corretamen­te o mundo que nos cerca. Considero que falhamos muitas vezes nesse desígnio essencial. As coisas de que mais precisamos, que mais amamos, que queremos possuir em absoluto ou queremos que sejam nossas, bem como o querermos mantê-las subjugadas ou acreditar que temos direito a elas porque a sua independên­cia é intoleráve­l. E no entanto nem o mundo nem nenhuma das pessoas nele é propriedad­e nossa.Vivemos aqui pela graça. Acho que é preciso coragem para viver dessa maneira e eu queria escrever sobre essa coragem. O seu romance foi elogiado e comparado a inícios de carreira como o de Harper Lee com Mataram a Cotovia e Joseph Heller com Catch-22. Revê-se nesses textos inflamados da crítica? Vi alguns atos extraordin­ários de cidadania literária e estou extremamen­te agradecido. Não creio que alguém tenha direito a esse tipo de ajuda, mas a bondade de outros escritores é algo que eu nunca deixarei de ter presente. Acredita que irá rever-se numa quase certa adaptação ao cinema deste seu romance? Penso que uma adaptação ao cinema está longe de ser certa e, se avançarmos, será porque encontrámo­s alguém apaixonado, alguém que quer contar uma história com coragem, coração e princípios. Nenhum empreendim­ento é sempre garantido, mas se alguma vez fizermos um filme será porque achamos que isso é possível. Não tenho interesse em ceder os direitos por nada menos do que isso. Esperava ver o seu romance traduzido para português? Não.

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