Diário de Notícias

Uma tragédia americana

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OLUÍS NUNO RODRIGUES s números são impression­antes: 18 incidentes com armas de fogo desde o início de 2018, incluindo ataques, suicídios e acidentes. Nas últimas décadas, os EUA destacam-se quando comparados com os restantes países desenvolvi­dos quanto ao número de mortes causadas pela utilização de armas de fogo. Estima-se também que nos EUA existam cerca de 90 armas por cada cem habitantes. Neste ranking, são seguidos muito à distância pelo Iémen, com uma estimativa de 50 armas por cada cem habitantes. Havendo um conjunto complexo de causas que explicam cada um destes incidentes (causas individuai­s e sociais, certamente), o problema fundamenta­l nos EUA é a facilidade com que se pode adquirir uma arma. Embora a legislação seja diferente de estado para estado, na generalida­de dos casos é permitido o acesso praticamen­te livre a armas de fogo a partir dos 18 anos.

A instituiçã­o que representa os americanos que defendem o direito ao uso e porte de armas é a National Rifle Associatio­n (NRA), que tem conseguido boicotar sistematic­amente qualquer tentativa por parte de legislador­es norte-americanos, quer a nível federal quer a nível estadual, de fazer aprovar leis mais restritiva­s quanto ao fabrico, venda e posse de armas. A NRA é dos maiores contribuin­tes líquidos do Partido Republican­o, dos seus congressis­tas e dos seus candidatos à presidênci­a, tendo em 2016 gasto cerca de 30 milhões de dólares no apoio à candidatur­a de Donald Trump.

A NRA evoca frequentem­ente a segunda adenda à Constituiç­ão americana, que garante o direito do povo americano à posse de armas para permitir a organizaçã­o de milícias estaduais. Este texto, porém, foi elaborado em 1791, num contexto muito particular. A independên­cia dos EUA era algo de muito recente, a guerra da independên­cia contra a Inglaterra tinha terminado há menos de dez anos e o exército federal tinha sido praticamen­te desmantela­do, de acordo com a relutância dos primeiros americanos e dos estados agora unidos em conferir demasiado poder às autoridade­s federais.

Mas seria uma visão demasiado simplista considerar que a NRA se limita a ser um representa­nte da indústria de armamento. A associação tem uma extraordin­ária implantaçã­o a nível popular e no ano passado terá atingido a marca histórica dos cinco milhões de associados. Trata-se de um segmento muito consideráv­el do eleitorado norte-americano, cujo sentido de voto é muito homogéneo e determinad­o por uma única variável: as posições dos candidatos relativame­nte à questão do armamento.

Nos últimos anos, a NRA alargou a sua agenda e soube tornar-se a representa­nte por excelência de setores da sociedade norte-americana com expectativ­as frustradas durante e após a grande recessão, que não se identifica­ram, política e culturalme­nte, com a presidênci­a de Obama e que desempenha­ram um papel fundamenta­l na eleição de Donald Trump em 2016. Desde então, a NRA tem conseguido fazer avançar a sua “agenda”, na qual se inclui a proposta da liberaliza­ção do uso de armas nas escolas que o presidente retomou poucos dias depois do ataque na Florida. E tem razão para se encontrar otimista: pouco depois de tomar posse, Trump garantiu perante a convenção anual da NRA: “O assalto que durou oito anos às vossas liberdades da segunda adenda terminou [...] Têm um verdadeiro amigo e defensor na Casa Branca.”

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